A política israelense apresenta um quadro de complexidade extrema, que, por vezes, parece desafiar ao bom senso e à prevalência de uma real democracia.
Após doze anos de governo, Israel consegue livrar-se da permanência de Benjamin Netanyahu no topo da estrutura parlamentarista. Para tanto, foi formada uma improvável coalizão que se amalgama contra o símbolo dessa governança, que é o próprio Netanyahu. Como todo projeto de sistema, que se baseia na contraposição a um líder, cujo poder se alimenta na corrupção e no favorecimento indevido - que é uma das características desse tipo de arregimentação - tal candidatura à sucessão, ela terá necessariamente de sofrer na sua tentativa de conseguir justificar o próprio pleito, pois a sua aliança terá a ínsita fraqueza de todo poder - por mais podre e corrupto que seja - que tem de justificar-se dentro de uma linha de ação que tende forçosamente ao negativismo.
Como os estudos sobre o poder tendem a demonstrar, o seu exercício por longo tempo leva a corromper a liderança que aprendeu a valer-se das prebendas e das vantagens (tanto óbvias quanto menos discerníveis) que se associam a essa oportunidade, que com o passar dos dias, meses e anos tenderá a crescer e a impor-se como se fora consequência inelutável e até natural de um crescente comércio com tal realidade que se avantaja sempre mais. Nessa condução de um processo que é azeitado pelas oportunidades do próprio exercício, a própria existência do "sistema", corrupto, Bibi Netanyahu coexistira com um sistema de arranjos (arreglos) e de negócios por debaixo do pano, que pareceriam imagem distorcida da democracia, mas que na realidade constituem a sua própria negação.
É sempre hora difícil para o grupo (coalizão) que se contraponha ao bloco formado por Netanyahu - que, de resto, se empenha em usar o poder para livrar-se de processos judiciais em que é acusado de ... corrupção. A própria "lógica" desse tipo de governança o obriga a dela valer-se para se livrar de processos judiciais em que venha a ser acusado de corrupção.
Por sua vez, Naftali Bennett. líder do Yamina e ex-ministro da Defesa, afirma que o recém-empossado e autonomeado "governo da mudança" se empenhará em representar a "todos os israelenses". No seu discurso, ressalta que é mais do que hora de uma "mudança de regime" e que o país "parou o trem antes do abismo".
A extrema fragmentação do atual regime israelense não pode ser subestimada. Ela está presente, tanto nas asserções dos políticos, quanto nas respectivas atitudes de combate ou de convivência com tais pulsões. Nesse sentido, assim se expressa Naftali Bennett : "Tenho orgulho da habilidade de sentar com pessoas que têm visões muito diferentes da minha. Chegou a hora de líderes diferentes, de todas as partes da população, porem um fim nessa loucura."
Nos termos do acordo firmado no dia onze, Bennett será o primeiro ministro por dois anos. Se a coalizão sobreviver até 2023 - ela terá a maioria de sessenta e uma cadeiras, apenas uma a mais do que a metade - e ele Bennett será substituído por Yair Lapid, lider do Yesh Atid e negociador central da aliança, em um esquema de rodizio. Até esse momento futuro, Lapid será o ministro das relações exteriores.
Ao reportar-se ao "fim da loucura", Naftali Bennett falava da onda de violência intercomunitária entre árabes-israelenses e judeus ultra conservadores, que coincidira com a crise em Gaza, e ao nó-político que finalmente é desatado, após quatro eleições inconclusi- vas em três anos, diante da sequência de tentativas de Netanyahu de permanecer no poder. Se o ex-premier não dá sinais de que vá desaparecer, mormente após passar os últimos dias buscando minar o novo governo, com efeito, a campanha nesse sentido de Netanyahu não dá sinais de esmorecimento: "Se nosso destino é estar na oposição, faremos isso de cabeça erguida, derrubaremos esse governo ruim e voltaremos a liderar o país de nossa maneira", afirmou em seu derradeiro discurso na Knesset. E acrescentou: "Vou lutar cotidianamente contra esse governo de esquerda perigoso. "
Com efeito, Netanyahu, neste discurso que se entende como de despedida, não afeta humildade, nem que alimente idéias de uma eventual composição. Dessarte, ao deixar o poder, Netanyahu chama Bennett de "falsa direita", e até de traidor, por ter-se juntado a siglas de esquerda, de centro e de árabes-israelenses. Nesse contexto, foi anunciado que o governo que está de saída não realizará cerimônia para marcar a transição de poder, mas que haveria uma reunião de passagem hoje.
Nesse contexto, a sua tática é o conhecido quanto pior, melhor. Pensa desestabilizar a aliança, mirando novas eleições que, eventualmente, o catapultariam de volta ao poder (segundo pensa), mas, pelo visto, não atenta para os respectivos problemas judiciais, que, pelas indicações disponíveis, tenderão a ser grandes...
Marginalizado, o líder da Oposição busca desestabilizar a aliança, mirando a miríficas novas eleições que, no seu entender, o catapultariam de volta ao regaço do poder. Decerto, tal transformação não o ajudou, e a tarefa passou para Lapid, que tinha uma potencial aliança com siglas de centro e esquerda, além da Lista Árabe Unida. Após semanas de conversa, o Yamina decidiu apoiar a coalizão, e um acordo de última hora - a cerca de quarenta minutos do prazo dado pelo Presidente Rivlin - com Naftali Bennett, bateu o martelo para a formação da coalizão, tendo presente a condição do próprio Naftali para unir-se à composição - i.e., assumir o comando da coalizão na primeira metade do mandato.
Dada a sua formação, muita cautela é aconselhável para o eventual balizamento do novo gabinete. Naftali Bennett é filho de imigrantes americanos, sendo o ex-líder do Yesha, o principal movimento de colonos israelenses na Cisjordania, que são os assentamen- tos e a anexação dos territórios ocupados na chamada Guerra dos Seis Dias, em 1967, sendo ele opositor da criação de um Estado palestino. Depois do cargo de comandante das Forças de Defesa Israelenses, ele veio a tornar-se multimilionário ao comprar, desenvolver e vender start-ups tecnológicas.
Se as dificuldades que Bennett vá encontrar no respectivo programa de trabalho já poderiam estar indicadas na sua posição política e nos seus procedimentos consequentes, dados os antecedentes, afigura-se, no entanto, prematuro tentar condicionar tais características como eventuais falsos caminhos para a situação e conformação de seu gabinete. A própria história recente de Israel e de suas relações com os seus vizinhos tenderia a recomendar cautela quanto a eventuais ilações, dadas as características e as condicionantes dessa mesma política, tendo inclusive presente o extremo cuidado que demandaria o seu tratamento, sobretudo em um ambiente que tenderia a ser rico em contradições, como a própria experiência recente induz a demonstrar, sendo esse teatro político cheio de desafios e de consequentes problemas.
( Fonte: O Globo )
Nenhum comentário:
Postar um comentário