quarta-feira, 11 de março de 2009

A Crise Financeira Americana

Ao ler o artigo de Jeff Madrick, em The New York Review of Books, datado de doze de fevereiro último – em que resenha os livros “O Derretimento de um Trilhão de Dólares”, de Charles R. Morris, e “Choque Financeiro: Visão de 360 graus da Implosão das Hipotecas subprime”, de Mark Zandi, além de série de artigos de Gretchen Morgenson et al., publicados no New York Times, de 28 de setembro a 28 de dezembro de 2008 – logo me capacitei da necessidade de resumi-lo. Será um esforço de documentação que me parece indispensável para que se tenha melhor compreensão das causas e do mecanismo da crise financeira americana, e de como ela contagiaria a economia européia e mundial.

Responsáveis pela Crise. Algumas personalidades proeminentes dos mercados financeiros têm insistido em que o oportunismo de operadores financeiros não causou a atual crise financeira. Assim, no entendimento de Robert Rubin, ex-Secretário do Tesouro e ex-diretor do grupo Citibank, a quase falência do Citi se deve ao “encadeamento” (buckling) do sistema financeiro e não a erros cometidos pelo banco. De acordo com Harvey Golub, antigo presidente da American Express, a culpa se acha sobretudo com o Governo americano, que desde os anos noventa vem promovendo o recurso às hipotecas para americanos de baixa renda. Essa política, na argumentação de Golub, conduziu para a vertigem insustentável das hipotecas subprime dos anos 2000.
O livro de Charles Morris rebate todas essas desculpas e tentativas de passar a responsabilidade para “o governo”. Morris demonstra que foi a sede de lucros fáceis que levou bancos comerciais e de investimento tanto nos Estados Unidos quanto na Europa e na Ásia – assim como fundos de ‘hedge’, companhias de seguro, companhias privadas e outras instituições financeiras - a assumirem riscos despropositados para amealhar os seus próprios ganhos imediatos e no futuro, desse modo colocando em perigo o sistema nacional de crédito e agora a própria economia americana.
Segundo o articulista, no entanto, seria errado concluir que não teriam valor os novos vetores de investimento e as intricadas estratégias de “securitização”, desenvolvidos nos últimos trinta anos. Assim, a partir do fim dos anos setenta, a prática de juntar (package) hipotecas e de colocá-las no mercado como supostas “obrigações colaterizadas de dívida” (a chamada securitização das hipotecas) tinha o escopo alegadamente sensato de dividir o risco existente nos empréstimos. Isto se aplicaria especialmente às hipotecas residenciais, vendidas para muitos investidores nos Estados Unidos e, mais tarde, no mundo. A fórmula disso estaria em que, se muitas partes partilhassem o risco, o custo do financiamento seria diminuído, o que ensejaria a que mais pessoas adquirissem casas, e também empresas investissem mais em pesquisa, fábricas e equipamento.
Contudo, nos últimos vinte anos este sistema inovador foi explorado de forma excessiva. Ao contrário da assertiva de Rubin de quem ninguém previu a atual crise, Morris antecipou que o crescente acúmulo da chamada securitização das hipotecas tornara perigosamente vulnerável o sistema financeiro. Com efeito, o próprio Charles Morris terá subestimado o custo do derretimento (meltdown) financeiro através do mundo. As estimativas de perda pelas instituições financeiras agora estão entre um trilhão e dois trilhões de dólares.

Colapso do Mercado habitacional. Tanto Morris quanto Zandi começam pelo colapso do mercado da habitação para o desencadeamento da crise (unwinding) dos mercados. No entanto, no entender de Madrick, é relevante acompanhar nas últimas décadas o desenvolvimento e rápida difusão em Wall Street da técnica de investimento de fazer pacotes (packaging) de empréstimos, principalmente hipotecas feitas por bancos e associações de poupança (savings and loan), transformados em vetores de investimento, nos quais fundos de pensão, gerentes financeiros, fundos de hedge, e outras empresas podiam investir. A securitização das hipotecas residenciais tinha especial atração, diante do tamanho do mercado de hipotecas nos Estados Unidos, que se eleva a trilhões de dólares.
Esta prática se fundava em um precedente importante, v.g., o papel das instituições Fannie Mae e mais tarde também Fred Mac, que, patrocinadas pelo governo americano, adquiriam de bancos e associações de poupança muitas hipotecas contratadas, de forma a liberá-los para negociar outras hipotecas, ampliando assim o número de propriedades residenciais disponíveis para os cidadãos americanos. Nos Estados Unidos, não há transação que seja mais favorecida pelo imposto de renda – inclusive com a dedutibilidade dos juros das hipotecas – do que a compra de uma residência.
No fim dos anos setenta, os bancos de investimento – Salomon Brothers em especial – descobriram um novo lucrativo ramo de negócio nas obrigações com base nas hipotecas. Começaram a lançar pacotes delas como se fossem títulos convencionais, com a ressalva de que pagavam juros mais altos. Em 1983, um banqueiro inovador, Larry Fink, faria pacotes de hipotecas, distribuídas em diversas tranches de risco, com as respectivas taxas de juro. Esta inovação atraíu a muitos clientes – fundos de pensão, importantes instituições financeiras – a investirem nas obrigações hipotecárias (mortgage backed). A consequência seria que o mercado privado desse tipo de obrigações excederia de muito o governamental.
A primeira tranche – cerca de sessenta por cento de todos os investidores neste mercado de obrigações hipotecárias – seria paga com os juros e o principal dos fluxos mensais de dinheiro dos detentores das hipotecas. Por ser o investimento mais bem protegido, os inversores receberiam a mais baixa taxa de juros. As demais tranches subordinadas seriam pagas depois do pagamento desta primeira tranche. Por causa do risco maior de não-pagamento, elas receberiam uma taxa de juros mais alta. As tranches mais baixas apresentavam os riscos mais altos – o chamado lixo tóxico – porque seria as últimas a serem pagas, e, portanto, as primeiras a perderem dinheiro se os pagamentos não fossem honrados (default). Inversores nesta última tranche receberiam dois ou três pontos percentuais a mais de juro para encorajá-los a tomar o risco. O chamado “lixo tóxico” tendia a ser adquirido por fundos de hedge, eis que esses agressivos vetores de investimento incorriam em riscos mais elevados para auferir lucros mais altos para seus inversores.
Para os bancos e os corretores de hipoteca que subscreviam os emprestimentos hipotecários, a vantagem financeira era significativa. Podiam agora vender as hipotecas que haviam subscrito quase de imediato para os packagers, mormente para bancos de investimento, auferindo um lucro rápido – de 0.5 a um por cento do valor da hipoteca. Por falta de regulamentação nesse aspecto, os bancos não tinham que respeitar requisitos mínimos de capital nesses empréstimos, e ficavam assim habilitados a fazerem novos empréstimos e, em seguida repetir o processo acima, com a vendas das hipotecas securitizadas, para colher outros prêmios pela operação.
Os compradores de residência também lucravam com a securitização. Em função da demanda de todos esses vetores financeiros as hipotecas eram concedidas facilmente, com juros baixos para atrair maior números de interessados. Assim, se deve sobretudo ao apetite dos inversores por obrigações hipotecárias e aos lucros fáceis feitos pelos bancos e corretores hipotecários que desembocou na frenética subscrição de hipotecas nos anos 2000, e não incentivos do governo federal para emprestar a compradores de baixa renda.
A inventiva dos operadores não se limitou à securitização das hipotecas. Nos anos noventa, os banqueiros comerciais e de investimento expandiram o mercado para novas formas de seguro, chamados de swaps de não-cumprimento de crédito (credit default swaps), que supostamente garantiriam titulares de obrigações hipotecárias no caso de default. Tratam-se de transações complexas que envolvem derivativos (opções ou contratos futuros baseados em ações tradicionais, títulos, etc. ). Esta proteção do seguro estimulou os inversores a serem ainda mais audaciosos, inclusive fundos de hedge, bancos comerciais e de investimento, nos seus negócios com as obrigações hipotecárias. Agora, que muitas dessas hipotecas estão inadimplentes, é uma questão em aberto se tais títulos securitizados serão efetivamente cobertos. A AIG, a grande empresa de seguros, que foi salva pelo Governo em setembro último, endossou muitos desses títulos, e pode não estar em condições de arcar com tais compromissos.
No final dos noventa, o sistema americano de crédito mudara radicalmente. Havia um grande número de empréstimos não a cargo de bancos comerciais ou instituições de poupança, que estão regulamentadas pelo Governo federal, mas por um sistema bancário na sombra – que crescia velozmente – de fundos de hedge, e de outros inversores não-regulamentados em New York, Londres e pelo mundo afora. Este sistema bancário informal concedia empréstimos, mas ao invés dos bancos comerciais, que tem de cumprir requisitos de reservas e de capital, legalmente impostos por suas atividades regulamentares – e estão igualmente sujeitos ao controle da Federal Reserve - a sua capacidade de tomar emprestado não sofria restrições. Assim, nos noventa os operadores em títulos securitizados, amiúde bancos de investimento, e até bancos comerciais estavam fazendo pacotes não só de hipotecas residenciais, mas também de empréstimos de equipamento, hipotecas comerciais, divida de cartão de crédito, e mesmo empréstimos de estudantes – denominados como dívidas e obrigações colaterizadas (CDOs) – e o setor bancário informal (shadow) os estava adquirindo. Segundo Morris, 80% de todos os empréstimos em 2006 ocorria em setores não-regulamentados da economia, comparado com 25% em meados dos anos oitenta.
As hipotecas viajavam uma tal distância da instituição para o investidor, que não havia mais contato pessoal com o real detentor da hipoteca. Assim, a possibilidade de inadimplência não era mais calculada por alguém em contato direto com devedor hipotecário, mas por complicados modelos estatísticos gerados por computadores de um inteiro campo (portfolio) de hipotecas. Como todos esses modelos, a despeito de sua sofisticação, eles implicam em estimativa do futuro baseada no passado. Ora, esta estimativa era inerentemente incapaz de levar em conta as consequências de um historicamente raro – e, portanto, aparentemente improvável – crash nos preços das moradias.
Além disso, as agências classificatórias (rating agencies) usavam estes mesmos modelos para outorgar classificações para as obrigações hipotecárias securitizadas, vendidas para os investidores. As agências classificatórias eram pagas pelos bancos comerciais e de investimento. Esses bancos vendiam os pacotes de hipotecas de acordo com a sua classificação, e dessarte, quanto mais alta fosse a classificação, mais altos seriam os lucros por eles auferidos.
Essas agências agora têm muito o que responder.
( Continuação a seguir
)

Um comentário:

lila disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.