De uns tempos para cá, a quota se tornou uma espécie de chave mágica para abrir os espaços da instrução e da habilitação profissional para uma faixa muito mais ampla de candidatos. Décadas de negligência, de baixas inversões na área da educação, de má remuneração para a classe dos professores e da consequente tendência decrescente para o nível dos futuros mestres, a resultante decadência da rede pública primária e secundária (primeiro e segundo graus) – todo esse conjunto de fatores não poderia deixar de repercutir negativamente na capacidade dos alunos de acompanharem os diferentes cursos de ensino superior.
Recordo-me, a propósito, de um país latino-americano em que servi durante minha carreira diplomática. Lá inexistia o vestibular – nem qualquer outro critério classificatório – para o ingresso nas faculdades das universidades públicas. Bastava ao aluno ser aprovado no grau secundário, para poder inscrever-se e seguir o curso superior de sua preferência.
Estupendo, não lhes parece ? Com efeito, essa universalização do acesso constituía enganosa dádiva. As enormes classes do início do ano letivo tendiam a sofrer gradual processo de esvaziamento, com a progressiva saída de respeitável número de ‘acadêmicos’, por absoluta falta de condições de absorverem as matérias constantes do currículo. Tinham sido convidados para participarem de aprendizado, sem disporem das ferramentas indispensáveis para acompanhar os seus colegas.
Formalmente, a paridade semelhava assegurada. As deficiências individuais, decorrentes de curriculos incompletos, os forçavam ao abandono, em uma decisão isolada, sem dúvida penosa, porém autônoma e sem qualquer coação do respectivo entorno.
Noticia hoje o jornal que a Câmara dos Deputados acaba de aprovar mais uma quota. É instituido um percentual de 10% para deficientes físicos em instituições públicas de ensino médio e superior. Vai agora para o Senado Federal, que ora discute a criação de quotas de 50% nas universidades federais para negros, pobres e alunos da escola pública.
De inicio, me parece oportuno levantar um ponto que ainda não vi referido. Houve um desvirtuamento do conceito de quota. Entusiasmados com as perspectivas oferecidas, legisladores (e os partidários desse sistema) perderam a noção do sentido epistêmico de quota. Ao alvitrar-se a possibilidade de conceder-se uma quota a determinado grupo de pessoas, o significado é o de reservar uma parcela a esses indivíduos. Nesse contexto, admitir que se atribua cota para favorecer tais pessoas, sempre estará implícito que se objetiva atender a uma parcela minoritária, como ocorreu na instituição estadunidense da Ação afirmativa.
Se ad absurdum se assumir que o Congresso vá considerar aceitável que essas duas quotas ora propostas se somem, teremos encolhido o universo disponível para os outros estudantes para um total de quarenta por cento ! Dessarte, o afã concessivo do legislador criará um enorme cercado, a que terão livre acesso apenas as classes julgadas desfavorecidas.
A abertura dessas portas cria convidativos atalhos, a que decerto a maioria dos possíveis favorecidos há de acorrer pressurosa. A hipertrofia do sistema de quotas – só explicável por um processo cumulativo de alienação do bom senso – nos dispensa de examinar a muito provável instrumentalização dos privilégios (como se acaba de verificar no acesso ao Prouni de alunos com carros importados).
O que me preocupa é a criação de facilidades que hão de implicar em uma receita de revoltas individuais e de contraposições de grupos contra injustiças demasiado objetivas. Como se sentirão os candidatos que, com médias bastante superiores, não lograrem a aprovação, enquanto um grande número da quota dos sessenta por cento, a despeito de notas inferiores, gozará de acesso livre aos bancos universitários ?
Por inépcia ou demagogia, qual será o resultado desta orgia de quotas que os congressistas teimam em empilhar umas sobre as outras ?
A inchação da quota, além de implicar em inversão de valores, transforma o acesso à universidade a um enorme country club, em que aos menos favorecidos (negros, pobres, alunos de escolas públicas e deficiente físicos) se outorgará a maior parte do espaço, cabendo aos excluídos (que constituem a maioria dos candidatos) a quota de quarenta por cento das vagas na universidade.
Não importa que seja um sistema de quotas às avessas. Será a cruel realidade, por mais artificial e abstruso que seja o processo de sua criação.
Quando se perde a noção do conceito, a consequência é virarem as coisas de cabeça para baixo.
No andar da carruagem, me parece mais do que tempo de uma reavaliação do que se está transformando em despautério. Que pode ser não só lógico, mas também social.
quinta-feira, 30 de abril de 2009
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