A história da Venezuela é rica em caudilhos e longas ditaduras. Em livro publicado pelo Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais,“Venezuela: Visões Brasileiras”(2003), contribuí com estudo sobre “A crise da democracia venezuelana. Relações com os Estados Unidos”. Produto do trabalho apresentado em seminário no Rio de Janeiro, em 2001, a minha apreciação sobre Hugo Chávez já prenuncia juízo sobre a ambigüidade do personagem. A esse propósito, G.Garcia Márquez, em artigo por mim citado, “O Enigma dos dois Chávez” (agosto de 2000), retratava a convivência em uma só pessoa do possível salvador de seu país e do ilusionista, um novo déspota entre tantos.
Se ainda havia então dúvidas sobre a natureza do autêntico Chávez, o passar do tempo cuidou de desfazer tais ilusões. As tendências autoritárias do mandatário venezuelano se delinearam de forma mais marcada depois de ser apeado do poder pelo chamado golpe virtual de abril de 2002. Prontamente reconduzido, por movimento popular com participação de oficiais militares, seu comportamento se enrijeceria nos anos subseqüentes.
Fundado no apoio que o dito golpe da mídia teria recebido do governo Bush, sua postura antiamericana tenderia doravante a radicalizar-se. Por outro lado, a insegurança causada pelo intento de derrubá-lo, e sua atitude pouco firme diante de vicissitudes sofridas no curto espaço de tempo em que esteve fora do poder, terão igualmente contribuído para que enveredasse por práticas antidemocráticas.
Por trás de discurso formalmente democrático, Chávez, a pretexto de uma resistência contra o “império dos Estados Unidos”, no plano externo, vem estreitando laços não só com países com inclinações autoritárias, como a Rússia de Putin e Medvedev, o Vietnam, e o teocrático Irã, de Ahmadinejad, senão com ditaduras como a Bielo-Rússia, de Alexander Lukashenko, a Coréia do Norte, de Kim Jong-il, e a Líbia de Kadafi. Com ambições de liderança latino-americana, a par de frustradas tentativas de intervenção não tão discretas nos negócios internos da Colômbia (apoio às claudicantes FARC) e do Peru (promoção da candidatura de Ollanta Humala em oposição a Alan Garcia), lançou o bloco da Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas), que congrega seis países recepiendários da ajuda de Caracas (desde a minúscula Dominica até Cuba), e conta entre os favorecidos dos petrodólares a Bolívia, de Evo Morales, o Equador, de Rafael Correa, e o Paraguai, de Fernando Lugo. Ainda no campo dessa nova versão da diplomacia do dólar, e de suas conseqüências, corre em foro americano processo contra a alegada ingerência financeira ilegal do regime chavista na recente eleição argentina.
Toda essa munificência de Hugo Chávez se voltaria para a promoção de projeto pessoal de liderança internacional. Enquanto as cotações do barril de petróleo atingiam os US$ 135.00 (maio de 2008), o líder venezuelano poderia crer dispor de fundos a perder de vista para o financiamento de tão variegadas iniciativas (que incluem supostamente subsídios a velhinhos estadunidenses, que estariam desprovidos de maior apoio dos cofres locais). As perspectivas de tais projetos de beneficência (se para simplificar, nos ativermos ao prisma dos interesses de Chávez) sofrem radical mudança, se o barril de petróleo desce agora para os baixios de US$ 47.00. Semelha importante sublinhar nesse contexto a importância que tem a cotação do barril de petróleo como fonte potencial de riqueza para a economia da Venezuela. Mutatis mutandis, o preço do petróleo é determinante para indicar não só a viabilidade de sustentação dos projetos chavistas para a economia de seu país (e sobretudo em seus programas assistencialistas das camadas populacionais de menor renda, que formam o seu principal apoio político), senão para fornecer aportes financeiros aos diversos regimes latino-americanos julgados como próximos de seu ideário bolivariano e socializante. Porque, em outras palavras, o petróleo, se não é uma monocultura, é de longe a principal fonte de riqueza naquele país.
Existe, outrossim, na utilização externa por Chávez dos rendimentos suplementares, havidos com a considerável alça da cotação do petróleo, uma questão de ordem ética e de governança. Até que ponto o cidadão e a economia desse país sul-americano poder-se-ão considerar defraudados pelo substancial emprego dos recursos – que em última análise constituem uma riqueza finita da nação venezuelana – para sustentar distintos projetos de outros regimes e que, a par do polimento da imagem do Presidente Chávez, parecem ter pouca eficácia para o desenvolvimento de empreendimentos de interesse do povo venezuelano.
Tratada, de forma necessariamente sumária, a vertente externa do que poderia chamar-se o projeto chavista, falta-nos examinar as discrepâncias entre o discurso e a práxis, no plano interno. Por ele incluído na Constituição o instituto do ‘recall’ (possibilidade de destituir o presidente pelo voto, durante o curso de seu mandato), venceu com 59% o referendo convocado para tanto pela oposição. Em dezembro de 2006, Hugo Chávez foi reeleito por seis anos. Não obstante o seu mandato extender-se até 2012, Chávez não parece satisfeito em ter a sua existência política confinada em tais termos. Intentou em dezembro de 2007, não só prorrogar o mandato de seis para sete anos, mas sobretudo abrir a possibilidade da reeleição ilimitada. Por primeira vez, sofreu o presidente derrota eleitoral, que, no entanto, não semelha havê-lo tornado mais conformado com os limites temporários do regime democrático.
Logo após a recente eleição, em que a coligação chavista venceu em termos numéricos, mas foi derrotada nos principais centros demográficos, Chávez adota uma dúplice linha de contra-ataque: através de decretos de discutível legalidade, o presidente esvazia a área de competência do governador distrital de Caracas, Antonio Ledezma, encampando cerca de trinta hospitais, o canal Ávila de Tv, 22 cartórios públicos e todas as 93 escolas da rede metropolitana (despacho do correspondente da Folha em Caracas). Por outro lado, relança – o que é também constitucionalmente questionável – a campanha por um novo referendo em busca da reeleição ilimitada. Tal obstinação do tenente-coronel Hugo Chávez, tão tristemente evocativa da ditadura do general Juan Vicente Gómez (1908-1935), relembra o quão desmedida pode ser a hubris do culto personalista do poder.
Por mais que a presença de Chávez busque espraiar-se em todas as esferas do poder constitucional – não o desmentem a pletórica presença na televisão, a inconteste prevalência nas esferas judicial e legislativa -, o medo da resistência democrática – todo regime forte tem os pés de barro da injustiça e do incontrolado temor por ela insuflado – pode mostrar-se em violências policiescas, como na recente expulsão de dirigentes da organização não-governamental Human Rights Watch, por terem ousado divulgar em Caracas relatório de cerca de trezentas páginas sob o título : “Uma década de Chávez – a intolerância política e oportunidades perdidas para o progresso dos direitos humanos na Venezuela”.
Qualquer adjetivação da democracia é uma forma quase transparente ou de limitá-la, ou de negá-la. A lata de lixo da história está repleta de democracias guiadas, populares, responsáveis e vá lá o que seja. A experiência demonstra como a alternativa referendária pode levar à mais absoluta negação do ideal democrático.
Em outro capítulo, ocupar-me-ei das relações de Hugo Chávez com o Brasil.
quarta-feira, 3 de dezembro de 2008
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