O GLOBO 28 e 29.XII.2008
Bolsa no Brasil perde US$ 835 bilhões em 2008.
Com o agravamento da turbulência financeira, o valor das ações das empresas negociadas na Bovespa despencou de US$ 1,399 trilhão, em 2007, para US$ 563,696 bilhões. O recuo chega a 59,70%, o segundo pior entre as nove principais bolsas do mundo. No topo deste ranking ao revés está a Rússia, com perda de 73%. Segundo economistas, o mercado acionário no Brasil foi afetado pela acentuada alta do dólar em relação ao real (33%). Pesou ainda a queda dos preços das matérias-primas, que atingiu a Petrobrás e Vale. A previsão para 2009 é que a Bovespa vai continuar instável, devido à incerteza sobre a duração da recessão nos EUA, Europa e Japão.
Comentário. A recente crise mundial – que supostamente não afetaria ao Brasil, nas previsões temerárias do Presidente Lula - veio em primeiro lugar mostrar a fragilidade do real em relação ao dólar estadunidense. Por um longo período, as autoridades financeiras brasileiras se congratularam com a suposta solidez do real. Com efeito, durante largo período o real não só se apreciou em relação ao dólar, mas foi a segunda moeda nesta apreciação (inferior apenas ao euro). Assinale-se que o câmbio passou de R$ 1,777, em fins de 2007, para R$ 2,370 na sexta-feira, 26 de dezembro de 2008 (alta de 33,37%). As reservas em divisas, se foram suficientes para livrar a economia brasileira de recorrer in extremis ao FMI e congêneres – como acontecera em crises mundiais anteriores - , não foram bastantes para manter o equilíbrio na relação de troca com o dólar.
Em segundo lugar, o fato de a Bolsa brasileira ter o segundo pior desempenho não é só um reflexo da gravidade da crise mundial (a princípio tolamente denegada, em termos de Brasil). É relevante sublinhar nesse contexto que US$30,271 trilhões ‘desapareceriam’ dos mercados de ação no correr do ano, o que representou um encolhimento de 50% do valor do mercado (de US$ 60,851 trilhões em 2007. Entretanto, é importante ter presente igualmente as debilidades da economia e da legislação brasileiras. Não foi por acaso que a Bovespa só foi superada em performance negativa pela bolsa russa, de um país com um PNB menor do que o nosso.
Dentre as fraquezas da bolsa e, por conseguinte, da economia brasileira, estão o percentual de sua desnacionalização (todas as montadoras de veículos auto-motores são estrangeiras, existem grandes bancos estrangeiros, etc.). Há por um lado grandes facilidades para a entrada e a saída de capitais estrangeiros, que não têm limitações de prazo (como em outros países), e que tampouco pagam impostos. Sendo um país emergente, e dos mais líquidos (com ações mais fáceis de comprar e de vender), em momentos de nervosismo dos inversores, tenderá a sofrer mais, penalizado pelas próprias facilidades concedidas ao mercado. Acresce a isto, por outro lado, a pressão sazonal de montadoras, bancos, etc. em sua transferência de divisas para as matrizes (em especial, se tais matrizes – como as montadoras americanas - estiverem em crise) o que acentua a tendência deficitária do nosso balanço de transações correntes.
Outra debilidade é que existe na Bovespa uma presença muito forte de commodities (matérias-primas como petróleo, minério de ferro, etc.). Além da bolha do valor de mercado do barril de petróleo (que inchou a importância relativa, v.g., do caudilho Hugo Chávez), existia acentuada valorização nas cotações de várias outras commodities. Ao sobrevir a crise, os produtos primários (com menos mão de obra agregada) são também os primeiros a sofrerem as conseqüências. Essa fragilidade tende a atingir menos os produtos com maior input tecnológico e de mão de obra.
Em função do fenômeno da globalização do capitalismo, a bolsa brasileira depende a fortiori do comportamento das bolsas da superpotência ( Wall Street e Nasdaq) e, secundariamente, das bolsas européias e japonesa. Nesse quadro, os fatores objetivos estão em segundo plano para os subjetivos, em que basta apenas a efetivação da queda nas cotações das bolsas americanas para ocasionar o despencar nos índices da Bovespa (efeito de manada).
Como se verifica acima, depois do Plano Real e da inserção da economia brasileira no mercado mundial sob parâmetros neoliberais, buscou-se – sobretudo no governo de Fernando Henrique Cardoso – criar facilidades para o investimento estrangeiro, facilidades essas que ensejaram a entrada no mercado financeiro de bancos importantes estrangeiros (além do Citibank, desde muito presente, vieram o Santander, o Amro Bank), o total domínio das montadoras de veículos por multinacionais estrangeiras. Se foi contra-arrestada a tentativa de vender a Petrobrás (recordam-se da estranha manobra de mudar-lhe o nome para Petrobrax ?), somente com o Governo Lula foi possível evitar o ulterior enfraquecimento do Estado – em uma linha que seria reminiscente do desastroso menenismo -, sem prejuízo da luta bem-sucedida em favor da estabilização monetária e do reforço da economia nacional.
Como permanecem, no entanto, essas grandes linhas neoliberais em nossa economia, as fraquezas acima citadas, se não forem corrigidas, continuarão a produzir efeitos.
segunda-feira, 29 de dezembro de 2008
terça-feira, 23 de dezembro de 2008
Dos Jornais XXVI
DOS JORNAIS - XXVI
O GLOBO - 21.12.2008
Santos Dumont ou Galeão ?
Em entrevista ao jornal carioca, Solange Paiva Vieira, presidente da Agência Nacional da Aviação Civil (ANAC) não concorda com as restrições impostas ao Santos Dumont em termos de tráfego aéreo interno. No seu entender ‘toda restrição só prejudica o consumidor’.
Comentário. O Santos Dumont era aeroporto de grande movimento até que foi fechado para reforma considerada inadiável. Por sua vez, o governo do estado sempre se empenhou pela suposta revalorização do Galeão. Ao contrário, no entanto, do que apregoam as autoridades estaduais, com o governador Sérgio Cabral à frente, a maior utilização do Galeão para vôos internos não redundou em avanços de suas pretensões de transformar-se em um hub em termos internacionais. Nas palavras de Solange Vieira, o movimento internacional do Galeão (l,1 milhão) é irrisório em comparação com Guarulhos (4 milhões).
Se o usuário tivesse vez, o renovado Santos Dumont receberia não apenas a ponte aérea Rio-São Paulo, mas também vôos para Brasília, Belo Horizonte, Vitória, Curitiba e, talvez, Porto Alegre. Pela sua situação topográfica, representa maior conforto e segurança para o passageiro. Congratulo-me, pois, com os propósitos de Solange Vieira, sintonizados com o interesse da sociedade, e não com a política do Estado do Rio de Janeiro que persistindo no favorecimento do Galão está ao arrepio deste mesmo interesse.
O GLOBO – 22.12.2008
Chavez anuncia desapropriação de shopping.
Pergunto-me por quanto tempo ainda haverá investimento estrangeiro na economia venezuelana. Por compreensíveis razões, qualquer inversor carece de um mínimo de previsibilidade e de estabilidade normativa no país em que se propõe empregar as próprias divisas. Ora, como um governante do estampo de Hugo Chávez, em que se mistura poder quase-ditatorial e tendência bastante marcada para temperamento errático, pode ser visto por empresas internacionais e investidores estrangeiros senão como um espantalho na prática a qualquer interesse em investir na Venezuela ?
Essa ‘politica’ de Chávez, anunciada em programas televisivos, pode beirar o ridículo, como o seu anúncio de que “ irá desapropriar um shopping em final de construção, no centro de Caracas, porque o lugar não combina com os ideais socialistas”. A comicidade, no entanto, diminui se tivermos presente o que acarreta em termos de atraso, de restrição ao emprego, e ao empobrecimento em geral da economia venezuelana. Com o petróleo na casa dos quarenta dólares e não nos três dígitos de antes, o voluntarismo de Chávez só contribui para encolher ainda mais a riqueza na sua república bolivariana.
O GLOBO - 21.12.2008
Santos Dumont ou Galeão ?
Em entrevista ao jornal carioca, Solange Paiva Vieira, presidente da Agência Nacional da Aviação Civil (ANAC) não concorda com as restrições impostas ao Santos Dumont em termos de tráfego aéreo interno. No seu entender ‘toda restrição só prejudica o consumidor’.
Comentário. O Santos Dumont era aeroporto de grande movimento até que foi fechado para reforma considerada inadiável. Por sua vez, o governo do estado sempre se empenhou pela suposta revalorização do Galeão. Ao contrário, no entanto, do que apregoam as autoridades estaduais, com o governador Sérgio Cabral à frente, a maior utilização do Galeão para vôos internos não redundou em avanços de suas pretensões de transformar-se em um hub em termos internacionais. Nas palavras de Solange Vieira, o movimento internacional do Galeão (l,1 milhão) é irrisório em comparação com Guarulhos (4 milhões).
Se o usuário tivesse vez, o renovado Santos Dumont receberia não apenas a ponte aérea Rio-São Paulo, mas também vôos para Brasília, Belo Horizonte, Vitória, Curitiba e, talvez, Porto Alegre. Pela sua situação topográfica, representa maior conforto e segurança para o passageiro. Congratulo-me, pois, com os propósitos de Solange Vieira, sintonizados com o interesse da sociedade, e não com a política do Estado do Rio de Janeiro que persistindo no favorecimento do Galão está ao arrepio deste mesmo interesse.
O GLOBO – 22.12.2008
Chavez anuncia desapropriação de shopping.
Pergunto-me por quanto tempo ainda haverá investimento estrangeiro na economia venezuelana. Por compreensíveis razões, qualquer inversor carece de um mínimo de previsibilidade e de estabilidade normativa no país em que se propõe empregar as próprias divisas. Ora, como um governante do estampo de Hugo Chávez, em que se mistura poder quase-ditatorial e tendência bastante marcada para temperamento errático, pode ser visto por empresas internacionais e investidores estrangeiros senão como um espantalho na prática a qualquer interesse em investir na Venezuela ?
Essa ‘politica’ de Chávez, anunciada em programas televisivos, pode beirar o ridículo, como o seu anúncio de que “ irá desapropriar um shopping em final de construção, no centro de Caracas, porque o lugar não combina com os ideais socialistas”. A comicidade, no entanto, diminui se tivermos presente o que acarreta em termos de atraso, de restrição ao emprego, e ao empobrecimento em geral da economia venezuelana. Com o petróleo na casa dos quarenta dólares e não nos três dígitos de antes, o voluntarismo de Chávez só contribui para encolher ainda mais a riqueza na sua república bolivariana.
segunda-feira, 22 de dezembro de 2008
Do Novo Ano e da Esperança
Manda a tradição que no limiar do Ano Novo as pessoas troquem votos de saúde e prosperidade. A propósito, recordo-me dos brilhantes pacotes que colocávamos debaixo da árvore, e que se destinavam a nossos filhos. Como vivia por dever de ofício longe do Brasil todos esses presentes de Papai Noel eram escolhidos e comprados por nós, eis que a distância impedia os demais parentes de participarem nas lembranças às crianças.
Tinha prazer em assistir à alegria deles, freneticamente abrindo, na verdade rasgando, os invólucros das caixas. Para eles, no meu entender, metade da satisfação estaria em desvendar o mistério que se encerrava em cada pacote, todos eles prometendo brinquedos e brincadeiras novas e diversas. E o nosso comum esforço, em terra estrangeira, de proporcionar aos filhotes a visão e o gozo de uma árvore cercada de pacotes de boas surpresas, tinha o objetivo principal de não negar às crianças a oportunidade de um Natal com o esperado número de presentes. Naquele jogo de fazer de conta, Papai Noel tinha trabalho redobrado – todos aqueles embrulhos reluzentes eram carinhosas mensagens não só nossas, mas de toda a família, de que o afastamento continental inviabilizara a presença.
Compreende-se, assim, a ansiedade com que as crianças íam para cama dormir, assim como o oculto despertador que os faria, de manhãzinha, vir até a árvore enganalada, para afinal descobrirem o que trouxera o bom velhinho.
Manda igualmente a tradição que em Natal e Ano Novo o otimismo seja de regra. Mesmo que da boca para fora, ninguém ousa desrespeitar esta regra não-escrita. Por isso, os fogos de artifício a saudarem as boas entradas, que se repetem, pelos caprichos do cronômetro, da baía de Sidney até Times Square. Em uma cidade conflagrada como o Rio de Janeiro, a noite de trinta e um de dezembro, com suas multidões em Copacabana, é espetáculo a repetir-se pelos anos afora. E é bem que, a exemplo das tréguas da Antigüidade e do medieval asilo sagrado nos templos, o bom povo carioca tenha mais do que quinze minutos de paz e gáudio, nas homenagens a Iemanjá, nas areias macias da praia, no passeio atopetado da avenida Atlântica, nas janelas curiosas dos edifícios circundantes, e, como nos velhos tempos, em retorno tranqüilo na alta madrugada aos respectivos domicílios.
E é bom que assim seja. É preciso acreditar em que as coisas possam um dia mudar para melhor. E por que não a partir deste dia, na confraternização em meio ao espoucar da champanha e de todas as demais bebidas a que os festejantes têm direito ?
Tinha prazer em assistir à alegria deles, freneticamente abrindo, na verdade rasgando, os invólucros das caixas. Para eles, no meu entender, metade da satisfação estaria em desvendar o mistério que se encerrava em cada pacote, todos eles prometendo brinquedos e brincadeiras novas e diversas. E o nosso comum esforço, em terra estrangeira, de proporcionar aos filhotes a visão e o gozo de uma árvore cercada de pacotes de boas surpresas, tinha o objetivo principal de não negar às crianças a oportunidade de um Natal com o esperado número de presentes. Naquele jogo de fazer de conta, Papai Noel tinha trabalho redobrado – todos aqueles embrulhos reluzentes eram carinhosas mensagens não só nossas, mas de toda a família, de que o afastamento continental inviabilizara a presença.
Compreende-se, assim, a ansiedade com que as crianças íam para cama dormir, assim como o oculto despertador que os faria, de manhãzinha, vir até a árvore enganalada, para afinal descobrirem o que trouxera o bom velhinho.
Manda igualmente a tradição que em Natal e Ano Novo o otimismo seja de regra. Mesmo que da boca para fora, ninguém ousa desrespeitar esta regra não-escrita. Por isso, os fogos de artifício a saudarem as boas entradas, que se repetem, pelos caprichos do cronômetro, da baía de Sidney até Times Square. Em uma cidade conflagrada como o Rio de Janeiro, a noite de trinta e um de dezembro, com suas multidões em Copacabana, é espetáculo a repetir-se pelos anos afora. E é bem que, a exemplo das tréguas da Antigüidade e do medieval asilo sagrado nos templos, o bom povo carioca tenha mais do que quinze minutos de paz e gáudio, nas homenagens a Iemanjá, nas areias macias da praia, no passeio atopetado da avenida Atlântica, nas janelas curiosas dos edifícios circundantes, e, como nos velhos tempos, em retorno tranqüilo na alta madrugada aos respectivos domicílios.
E é bom que assim seja. É preciso acreditar em que as coisas possam um dia mudar para melhor. E por que não a partir deste dia, na confraternização em meio ao espoucar da champanha e de todas as demais bebidas a que os festejantes têm direito ?
quinta-feira, 18 de dezembro de 2008
Reflexão sobre os Tempos
Marco Túlio Cícero, na sua primeira oração perante o Senado de Roma contra Lúcio Sergio Catilina, insere a famosa frase ‘O tempora, O mores’ (oh tempos, oh costumes). O cônsul Cícero precisou de mais três discursos para obter do Senado a autorização para combater e debelar a conspiração de Catilina. Esta célebre queixa sobre o estado dos costumes na república romana data de 63 a.C. Os malogrados planos de Catilina estão há muito esquecidos, as deploradas condições dos costumes romanos tinham longo caminho de descida pela frente, e – excluído o vocábulo catilinária - talvez o único que reste na memória ativa seja a exclamação acima. Tornou-se verdadeiro lugar-comum, presença quase obrigatória em incontáveis petições e sentenças, em que o autor (advogado ou magistrado) apela para suas fumaças de latinismo, com vistas a acoimar a reprovável situação dos tempos presentes.
Esta insatisfação com a atualidade aparece igualmente em filme de René Clair. Há um personagem, representado por Michel Simon, que, vestido com roupas antiquadas, surge a intervalos regulares na película (que é uma corrida ao revés através do tempo) a entoar loas sobre os bons velhos tempos. Na veia crítica do cineasta francês, Michel Simon personifica o saudosista, que será a outra face da medalha de quem critica as deploráveis condições da época em que vive.
Como se vê, desde a Antigüidade Clássica, nos tempos havidos posteriormente como áureos da civilização greco-romana, havia gente – e do porte de Cícero ! – que não estava satisfeita com o seu mundo. Daí se poderia passar para outra observação – igualmente estigmatizada de lugar-comum – tão cara aos franceses, que afirma, com a grandiloqüência gaulesa, que ‘não há nada de novo debaixo do sol’. Esta relativização histórica da originalidade motivou o queixume do romântico (e obscuro) poeta Rollo, que no século XIX se lamuriava com o fato de haver chegado demasiado tarde (trop tard) em um mundo já muito velho (trop vieux).
No entanto, defronte do triste espetáculo que a atualidade brasileira nos proporciona, cabe um momento de dúvida e de hesitação. Deveríamos continuar a nos aferrar ao paradigma de que os fenômenos humanos não mudam na sua essência, que o saudosismo é apenas a manifestação recorrente da insatisfação passadista, do gênero do poema de François Villon (1431-1489), que pergunta nostálgico “aonde estão as neves de antanho”? Convenhamos que a manutenção deste apego doutrinal se torna extremamente difícil se o confrontarmos com a realidade de nossa Terra de Santa Cruz.
Impressiona a criatividade brasileira voltada para o ganho ilícito. Não há limites para esta prática, que prolifera nas mais diversas atividades (apropriação indébita e adulteração de combustíveis; indústria de liminares, que não se restringe a áreas geográficas, como os jornais e a tevê o demonstram; neologismos que procuram atender à inventiva dos criminosos de colarinho branco: v.g., laranjas; uso indevido e recalcitrante em atividades médicas (cirúrgia plástica; lipoaspiração); a indústria dos recursos, que tende a tornar a figura jurídica da coisa passada em julgado (e da condenação definitiva) como uma improvável ficção (sob a condição, é lógico de dispor de bons advogados). Consoante a dadivosa Carta de 1988 – que nunca se liberou de sua condição genética de filha de Frankestein -, para as cortes pode-se dizer que a presunção de inocência persiste, não obstante sucessivas condenações, diante da quase inatingível condenação definitiva (mesmo para réus confessos) – atendida sempre a regra sine qua non de ter a tiracolo um bom advogado. Senão, comine-se todo o rigor da lei, como sofreram o homem que arrancou uma casca de árvore e a mulher que pichou a última Bienal.
Este desprezo do ético, do honesto, do morigerado, da obediência à lei, grassa por toda parte. Assistimos a fenômenos antes impensáveis como o da greve dos juízes, o da falsificação dos medicamentos, o furto de flagelados (Vide Santa Catarina, com a agravante de que as subtrações não se circunscrevem às classes de renda mais baixa). A expressão : “ilegal e daí ?” reflete a desordem urbana que caracteriza a moribunda administração César Maia. O Legislativo, com a sua dissonância perante a realidade nacional (em tempos de crise, a farra que incha as câmaras de vereadores, os contínuos aumentos de remuneração (em triste descompasso com o mísero salário dos professores,etc.etc.). Os exemplos de anomia se multiplicam e são revoltantes (para aqueles que preservam a capacidade de enojar-se com a-ético, o abuso de autoridade, o desonesto,etc.).
Tudo isso, dirão alguns, terá sido prenunciado pela notória lei de Gerson.
Será mesmo ? Depois do instituto da reeleição no governo anterior, na ainda sub-judice questão do mensalão, na proposta de abolição do Senado (V. escândalo de Renan Calheiros) o Povo (em nome de quem todo poder emana) precisará de muitos Diógenes com as respectivas lanternas para encontrar algum varão republicano que governe não só com a caneta mas também com a palavra e o exemplo.
Sem dúvida, o Brasil não está fora do mundo. Vivemos oito anos (ou quase) em que a tortura voltou a ser um instrumento da justiça. Graças a Bush, Cheney et al. a sociedade do século XXI tornou às masmorras e calabouços do século XVIII, de que a pena de Beccaria anunciara a superação. Aguardemos com esperança o que nos reserva Barack Obama. Por quanto tempo, a interrogação incrementada (nas palavras da direita raivosa) de Guantánamo e Abu Ghraib prevalecerá ? E o retorno ao velho patrimonialismo, com o leilão de indicações para cargos públicos, vamos limitá-lo apenas à velha Chicago ?
São tempos escuros (tempi bui), em que os meliantes tomam ares de gente proba, a despeito de escarnecerem dos honestos, que desejam transformar em motivo de risota.
Diante do sinistro cortejo a que somos forçados a assistir, seria o caso de pedir tempo, antes de emitir opinião acerca de nossa verdadeira situação?
Em termos de corrupção e da arrogância dos patifes, o atual desconforto seria apenas falta de um sentido de perspectiva histórica? Significaria tão só a velha frase de Marx? Ou será mais uma nova contribuição do Brasil ao mundo ?
Esta insatisfação com a atualidade aparece igualmente em filme de René Clair. Há um personagem, representado por Michel Simon, que, vestido com roupas antiquadas, surge a intervalos regulares na película (que é uma corrida ao revés através do tempo) a entoar loas sobre os bons velhos tempos. Na veia crítica do cineasta francês, Michel Simon personifica o saudosista, que será a outra face da medalha de quem critica as deploráveis condições da época em que vive.
Como se vê, desde a Antigüidade Clássica, nos tempos havidos posteriormente como áureos da civilização greco-romana, havia gente – e do porte de Cícero ! – que não estava satisfeita com o seu mundo. Daí se poderia passar para outra observação – igualmente estigmatizada de lugar-comum – tão cara aos franceses, que afirma, com a grandiloqüência gaulesa, que ‘não há nada de novo debaixo do sol’. Esta relativização histórica da originalidade motivou o queixume do romântico (e obscuro) poeta Rollo, que no século XIX se lamuriava com o fato de haver chegado demasiado tarde (trop tard) em um mundo já muito velho (trop vieux).
No entanto, defronte do triste espetáculo que a atualidade brasileira nos proporciona, cabe um momento de dúvida e de hesitação. Deveríamos continuar a nos aferrar ao paradigma de que os fenômenos humanos não mudam na sua essência, que o saudosismo é apenas a manifestação recorrente da insatisfação passadista, do gênero do poema de François Villon (1431-1489), que pergunta nostálgico “aonde estão as neves de antanho”? Convenhamos que a manutenção deste apego doutrinal se torna extremamente difícil se o confrontarmos com a realidade de nossa Terra de Santa Cruz.
Impressiona a criatividade brasileira voltada para o ganho ilícito. Não há limites para esta prática, que prolifera nas mais diversas atividades (apropriação indébita e adulteração de combustíveis; indústria de liminares, que não se restringe a áreas geográficas, como os jornais e a tevê o demonstram; neologismos que procuram atender à inventiva dos criminosos de colarinho branco: v.g., laranjas; uso indevido e recalcitrante em atividades médicas (cirúrgia plástica; lipoaspiração); a indústria dos recursos, que tende a tornar a figura jurídica da coisa passada em julgado (e da condenação definitiva) como uma improvável ficção (sob a condição, é lógico de dispor de bons advogados). Consoante a dadivosa Carta de 1988 – que nunca se liberou de sua condição genética de filha de Frankestein -, para as cortes pode-se dizer que a presunção de inocência persiste, não obstante sucessivas condenações, diante da quase inatingível condenação definitiva (mesmo para réus confessos) – atendida sempre a regra sine qua non de ter a tiracolo um bom advogado. Senão, comine-se todo o rigor da lei, como sofreram o homem que arrancou uma casca de árvore e a mulher que pichou a última Bienal.
Este desprezo do ético, do honesto, do morigerado, da obediência à lei, grassa por toda parte. Assistimos a fenômenos antes impensáveis como o da greve dos juízes, o da falsificação dos medicamentos, o furto de flagelados (Vide Santa Catarina, com a agravante de que as subtrações não se circunscrevem às classes de renda mais baixa). A expressão : “ilegal e daí ?” reflete a desordem urbana que caracteriza a moribunda administração César Maia. O Legislativo, com a sua dissonância perante a realidade nacional (em tempos de crise, a farra que incha as câmaras de vereadores, os contínuos aumentos de remuneração (em triste descompasso com o mísero salário dos professores,etc.etc.). Os exemplos de anomia se multiplicam e são revoltantes (para aqueles que preservam a capacidade de enojar-se com a-ético, o abuso de autoridade, o desonesto,etc.).
Tudo isso, dirão alguns, terá sido prenunciado pela notória lei de Gerson.
Será mesmo ? Depois do instituto da reeleição no governo anterior, na ainda sub-judice questão do mensalão, na proposta de abolição do Senado (V. escândalo de Renan Calheiros) o Povo (em nome de quem todo poder emana) precisará de muitos Diógenes com as respectivas lanternas para encontrar algum varão republicano que governe não só com a caneta mas também com a palavra e o exemplo.
Sem dúvida, o Brasil não está fora do mundo. Vivemos oito anos (ou quase) em que a tortura voltou a ser um instrumento da justiça. Graças a Bush, Cheney et al. a sociedade do século XXI tornou às masmorras e calabouços do século XVIII, de que a pena de Beccaria anunciara a superação. Aguardemos com esperança o que nos reserva Barack Obama. Por quanto tempo, a interrogação incrementada (nas palavras da direita raivosa) de Guantánamo e Abu Ghraib prevalecerá ? E o retorno ao velho patrimonialismo, com o leilão de indicações para cargos públicos, vamos limitá-lo apenas à velha Chicago ?
São tempos escuros (tempi bui), em que os meliantes tomam ares de gente proba, a despeito de escarnecerem dos honestos, que desejam transformar em motivo de risota.
Diante do sinistro cortejo a que somos forçados a assistir, seria o caso de pedir tempo, antes de emitir opinião acerca de nossa verdadeira situação?
Em termos de corrupção e da arrogância dos patifes, o atual desconforto seria apenas falta de um sentido de perspectiva histórica? Significaria tão só a velha frase de Marx? Ou será mais uma nova contribuição do Brasil ao mundo ?
segunda-feira, 15 de dezembro de 2008
A trágica morte de um brasileiro em Londres
Todos nós temos presente – ou deveríamos tê-lo – a fatalidade que vitimou Jean Charles de Menezes na estação Stockwell, nas profundezas do Metrô de Londres. Um pelotão policial, aguilhoado por uma situação de alegada ameaça pública (tentativas de bombas no metrô haviam sido descobertas na véspera) lançara-se em cega e insana perseguição contra um suposto homem-bomba, perseguição esta que configura a mais irrespondível acusação contra a força policial londrina. Na verdade, como que endemoniados por histérico temor xenófobo, não foi dada qualquer possibilidade de fazer valer os seus direitos ao estrangeiro designado como culpado. Na terra da Magna Carta, Jean Charles de Menezes não pôde apelar para a sua presunção de inocência. A desembestada caça chegaria à triste conclusão no ignóbil fuzilamento do pobre Jean Charles de Menezes, morto e mais do que morto pelo inacreditável número de oito disparos.
Logo depois daquela manhã de 22 de julho de 2005, a flagrante injustiça cometida contra o brasileiro Jean Charles, abatido sem piedade pelo crime de não parecer um natural da Inglaterra, foi objeto de comoção no Brasil, a ponto de motivar a viagem do Ministro das Relações Exteriores a Londres. A par das conversações reservadas, lá também se realizou conferência de imprensa, com a presença do então Primeiro Ministro Tony Blair e do carrancudo Celso Amorim.
Desde esta execução sumária, a família de Jean Charles, apoiada por associações de direitos humanos, se empenha na necessária missão de provar judicialmente o execrável erro policial que estupidamente cortou a existência trabalhosa e sofrida de Jean Charles, que não se transladara para Londres por motivos turísticos, mas sim para ganhar honestamente a vida.
Não se pode afirmar que o processo inglês haja primado pela rapidez. Se bem que no Brasil as peculiaridades processuais muita vez trabalham em prol dos assassinos – e no capítulo, as citações seriam até constrangedoras – tampouco se pode asseverar que às margens do histórico Tâmisa a preocupação da justiça haja sido excessiva.
Nenhum dos responsáveis – seja operacionais, seja a nível de direção ou falta dela – sofreu qualquer penalização por motivo da “lamentável ocorrência”.
Na semana passada, o coroner (no caso, intraduzível funcionário do sistema inglês, que faz as vezes de juiz no exame judicial das causas de uma morte que se supõe não tenha ocorrido por causas naturais) presidiu os trabalhos de inquérito (inquest), que objetivava examinar as circunstâncias da morte de Jean Charles. Iniciado a 22 de setembro último, ao cabo de ouvir as partes, o júri, após deliberar por uma semana, chegou às seguintes conclusões: a polícia não deu qualquer aviso antes de atirar contra o ‘suspeito’. Tampouco a vítima, Jean Charles, avançou contra os seus perseguidores (o que daria aos policiais motivo para atirarem).
Entretanto, esse inquest inglês já começou capenga. Em 2007, procedimento anterior se propunha estabelecer se a polícia desrespeitara as leis sanitárias e de segurança. Então, a conclusão dos jurados declarou a polícia culpada de infringir a lei.
E por que se deve considerar capenga esse último inquérito, que complementa o anterior ? Pela simples razão – e este fato explica muitas coisas dessa busca de justiça – que o coroner notificou os jurados que eles não estavam autorizados a emitir veredito de “morte ilegalmente provocada” (unlawful killing). De tal maneira, os jurados se viram manietados, eis que na prática poderiam fazer considerações acerca do comportamento dos serviços de polícia, mas não podiam tirar de tais fatos – obtidos pela outiva de testemunhas, diga-se de passagem – a capacidade legal de emitir um juizo vinculante. Em outras palavras, reuniu-se um júri, que não era suposto cumprir com as suas funções plenas.
Ao fim do inquest, o Comissário-Chefe, em funções, da Polícia Metropolitana, Paul Stephenson declarou que “a morte de Jean Charles de Menezes foi uma tragédia. Ele era um inocente e aceitamos responsabilidade plena por sua morte. Alguém perder a vida em tais circunstâncias é algo que deploramos profundamente”.
Essas palavras do Comissário-Chefe são palavras que os familiares da vítima e nós brasileiros custamos bastante a ouvir.
A respeito da situação atual, os familiares do assassinado deram declaração em que certa generosidade se alia à resignação : “A decisão não nos trará de volta Jean Charles. Contudo, ela vai um pouco na direção do reconhecimento das falhas que causaram a sua morte.”
Essa luta comprida, face às intricâncias e delongas brandidas pelo corporativismo, terá que limitar-se às declarações, sonoras porém incompletas, sem nunca atingir a eventual responsabilização daqueles que, direta ou indiretamente, mataram na manhã de 22 de julho de 2005 o pobre Jean Charles, culpado de tentar tomar o metrô para apresentar-se no seu trabalho ?
Logo depois daquela manhã de 22 de julho de 2005, a flagrante injustiça cometida contra o brasileiro Jean Charles, abatido sem piedade pelo crime de não parecer um natural da Inglaterra, foi objeto de comoção no Brasil, a ponto de motivar a viagem do Ministro das Relações Exteriores a Londres. A par das conversações reservadas, lá também se realizou conferência de imprensa, com a presença do então Primeiro Ministro Tony Blair e do carrancudo Celso Amorim.
Desde esta execução sumária, a família de Jean Charles, apoiada por associações de direitos humanos, se empenha na necessária missão de provar judicialmente o execrável erro policial que estupidamente cortou a existência trabalhosa e sofrida de Jean Charles, que não se transladara para Londres por motivos turísticos, mas sim para ganhar honestamente a vida.
Não se pode afirmar que o processo inglês haja primado pela rapidez. Se bem que no Brasil as peculiaridades processuais muita vez trabalham em prol dos assassinos – e no capítulo, as citações seriam até constrangedoras – tampouco se pode asseverar que às margens do histórico Tâmisa a preocupação da justiça haja sido excessiva.
Nenhum dos responsáveis – seja operacionais, seja a nível de direção ou falta dela – sofreu qualquer penalização por motivo da “lamentável ocorrência”.
Na semana passada, o coroner (no caso, intraduzível funcionário do sistema inglês, que faz as vezes de juiz no exame judicial das causas de uma morte que se supõe não tenha ocorrido por causas naturais) presidiu os trabalhos de inquérito (inquest), que objetivava examinar as circunstâncias da morte de Jean Charles. Iniciado a 22 de setembro último, ao cabo de ouvir as partes, o júri, após deliberar por uma semana, chegou às seguintes conclusões: a polícia não deu qualquer aviso antes de atirar contra o ‘suspeito’. Tampouco a vítima, Jean Charles, avançou contra os seus perseguidores (o que daria aos policiais motivo para atirarem).
Entretanto, esse inquest inglês já começou capenga. Em 2007, procedimento anterior se propunha estabelecer se a polícia desrespeitara as leis sanitárias e de segurança. Então, a conclusão dos jurados declarou a polícia culpada de infringir a lei.
E por que se deve considerar capenga esse último inquérito, que complementa o anterior ? Pela simples razão – e este fato explica muitas coisas dessa busca de justiça – que o coroner notificou os jurados que eles não estavam autorizados a emitir veredito de “morte ilegalmente provocada” (unlawful killing). De tal maneira, os jurados se viram manietados, eis que na prática poderiam fazer considerações acerca do comportamento dos serviços de polícia, mas não podiam tirar de tais fatos – obtidos pela outiva de testemunhas, diga-se de passagem – a capacidade legal de emitir um juizo vinculante. Em outras palavras, reuniu-se um júri, que não era suposto cumprir com as suas funções plenas.
Ao fim do inquest, o Comissário-Chefe, em funções, da Polícia Metropolitana, Paul Stephenson declarou que “a morte de Jean Charles de Menezes foi uma tragédia. Ele era um inocente e aceitamos responsabilidade plena por sua morte. Alguém perder a vida em tais circunstâncias é algo que deploramos profundamente”.
Essas palavras do Comissário-Chefe são palavras que os familiares da vítima e nós brasileiros custamos bastante a ouvir.
A respeito da situação atual, os familiares do assassinado deram declaração em que certa generosidade se alia à resignação : “A decisão não nos trará de volta Jean Charles. Contudo, ela vai um pouco na direção do reconhecimento das falhas que causaram a sua morte.”
Essa luta comprida, face às intricâncias e delongas brandidas pelo corporativismo, terá que limitar-se às declarações, sonoras porém incompletas, sem nunca atingir a eventual responsabilização daqueles que, direta ou indiretamente, mataram na manhã de 22 de julho de 2005 o pobre Jean Charles, culpado de tentar tomar o metrô para apresentar-se no seu trabalho ?
sexta-feira, 12 de dezembro de 2008
A Nova Face dos Protestos na Grécia
As manifestações de protesto prosseguiram na Grécia durante toda a semana. Nos primeiros dias, em que a revolta estudantil se mostrara mais forte, a situação política evoluíu para uma possível crise de governo. Os partidos de oposição, com o líder dos socialistas Georgos Papandreou à frente, pediram a demissão do gabinete da Nova Democracia, de Costas Karamanlis. Diversas passeatas pacíficas foram realizadas, em que foi expressa a considerável insatisfação popular com a morte do jovem Alexandros Grigorópoulos.
Nesse contexto, seria previsível que a oposição formada por Pasok (socialistas), comunistas e radicais de esquerda (Syriza) tenha reivindicado não só a saída de Karamanlis, mas também eleições antecipadas.
Houve dentro da própria maioria declarações ambíguas, que terão sido motivadas pela mosca azul do poder. Nesse sentido, a deputada (e ministra dos negócios estrangeiros) Dora Bakoyannis disse que a culpa pelos acontecimentos não podia ser circunscrita a apenas um setor - todos dela participavam. De modo algo oblíquo, dentro da linguagem cifrada e bizantina das facções políticas, pode-se interpretar o comentário como possível pré-posicionamento de uma alternativa na chefia de governo, no caso de que a posição do chefe partidário e primeiro-ministro Karamanlis ficasse fragilizada.
A própria minúscula maioria da direita – um voto de vantagem em parlamento de trezentos membros – representa inegável incentivo para que, diante de uma crise, a oposição visualize a oportunidade de instrumentalizar a situação, através da tentativa de antecipação dos comícios.
Nesse sentido, a lei eleitoral grega dá ao partido que alcance maioria relativa uma quota que possibilita a formação de maioria absoluta. Só existem atualmente dois partidos na Grécia em condições efetivas de usufruirem desta vantagem - a Nova Democracia e os socialistas (Pasok). Dessa maneira, o legislador assegurou não só a alternância no poder, senão as condições de governabilidade. Evita-se a repetição de situações anteriores em que gabinetes minoritários da direita e da esquerda ficavam reféns de pequenos partidos.
Após a greve geral – que estava aprazada há bastante tempo, como forma de protesto contra a política do atual governo, e que se serviu da motivação adicional da crise – as manifestações se seguiram, e o recurso à violência se tornou a tônica dos protestos.
Na sociedade grega existe uma faixa assaz minoritária – denominada de ‘anarquista’ pela imprensa – e que recorre sistematicamente a depredações, incêndios e danificações de prédios comerciais e públicos. Dessa feita, ao invés de singularizar a escolha a alvos como bancos, revendas de carros estrangeiros e prédios governamentais, a investida dos anarquistas se caracterizou pelo ataque indiscriminado ao comércio, tanto a lojas menores, quanto a grandes conjuntos comerciais. Por uma inicial retração das forças da ordem, centenas de lojas foram danificadas ou mesmo destruídas. Tal modalidade de ‘protesto’ provocou compreensível revolta na opinião pública. Duas conseqüências decorreram dessa mudança no sentimento da população: o enfraquecimento da indignação contra o governo e a concessão pelo gabinete de ajuda financeira a título de reparação às empresas mais prejudicadas.
Assim, no sétimo dia de distúrbios, as perspectivas se afiguram: (a) ulterior radicalização dos protestos estudantis, ora realizados sobretudo pela chamada ala anarquista do movimento universitário e secundarista (ter-se-á presente que Grigorópoulos tinha apenas quinze anos), e (b) seu progressivo isolamento em meio à sociedade helênica.
A menos que ocorram fatos imprevisíveis, a facção anarquista torna-se na prática a única antagonista das forças da ordem. Este cenário já é conhecido do governo grego e tende a contribuir para que a dita normalidade possa ser restabelecida.
Nesse contexto, seria previsível que a oposição formada por Pasok (socialistas), comunistas e radicais de esquerda (Syriza) tenha reivindicado não só a saída de Karamanlis, mas também eleições antecipadas.
Houve dentro da própria maioria declarações ambíguas, que terão sido motivadas pela mosca azul do poder. Nesse sentido, a deputada (e ministra dos negócios estrangeiros) Dora Bakoyannis disse que a culpa pelos acontecimentos não podia ser circunscrita a apenas um setor - todos dela participavam. De modo algo oblíquo, dentro da linguagem cifrada e bizantina das facções políticas, pode-se interpretar o comentário como possível pré-posicionamento de uma alternativa na chefia de governo, no caso de que a posição do chefe partidário e primeiro-ministro Karamanlis ficasse fragilizada.
A própria minúscula maioria da direita – um voto de vantagem em parlamento de trezentos membros – representa inegável incentivo para que, diante de uma crise, a oposição visualize a oportunidade de instrumentalizar a situação, através da tentativa de antecipação dos comícios.
Nesse sentido, a lei eleitoral grega dá ao partido que alcance maioria relativa uma quota que possibilita a formação de maioria absoluta. Só existem atualmente dois partidos na Grécia em condições efetivas de usufruirem desta vantagem - a Nova Democracia e os socialistas (Pasok). Dessa maneira, o legislador assegurou não só a alternância no poder, senão as condições de governabilidade. Evita-se a repetição de situações anteriores em que gabinetes minoritários da direita e da esquerda ficavam reféns de pequenos partidos.
Após a greve geral – que estava aprazada há bastante tempo, como forma de protesto contra a política do atual governo, e que se serviu da motivação adicional da crise – as manifestações se seguiram, e o recurso à violência se tornou a tônica dos protestos.
Na sociedade grega existe uma faixa assaz minoritária – denominada de ‘anarquista’ pela imprensa – e que recorre sistematicamente a depredações, incêndios e danificações de prédios comerciais e públicos. Dessa feita, ao invés de singularizar a escolha a alvos como bancos, revendas de carros estrangeiros e prédios governamentais, a investida dos anarquistas se caracterizou pelo ataque indiscriminado ao comércio, tanto a lojas menores, quanto a grandes conjuntos comerciais. Por uma inicial retração das forças da ordem, centenas de lojas foram danificadas ou mesmo destruídas. Tal modalidade de ‘protesto’ provocou compreensível revolta na opinião pública. Duas conseqüências decorreram dessa mudança no sentimento da população: o enfraquecimento da indignação contra o governo e a concessão pelo gabinete de ajuda financeira a título de reparação às empresas mais prejudicadas.
Assim, no sétimo dia de distúrbios, as perspectivas se afiguram: (a) ulterior radicalização dos protestos estudantis, ora realizados sobretudo pela chamada ala anarquista do movimento universitário e secundarista (ter-se-á presente que Grigorópoulos tinha apenas quinze anos), e (b) seu progressivo isolamento em meio à sociedade helênica.
A menos que ocorram fatos imprevisíveis, a facção anarquista torna-se na prática a única antagonista das forças da ordem. Este cenário já é conhecido do governo grego e tende a contribuir para que a dita normalidade possa ser restabelecida.
terça-feira, 9 de dezembro de 2008
As Manifestações de Protesto na Grécia
A cisão na sociedade grega, e a crescente insatisfação com os métodos de repressão policial eclodiram mais uma vez, desta feita ao ensejo do assassínio no sábado, a seis do corrente, por policiais, em bairro central de Atenas, de um jovem de quinze anos, Alexandros Grigoropoulos.
As manifestações de protesto dos estudantes são um fenômeno comum em Atenas. Em geral, as passeatas dos universitários ou se destinam à praça Sintagma (Constituição), onde se acha o edifício do Parlamento, ou vão mais além, subindo a avenida da Rainha Sofia, para terminarem diante do edifício-bunker da Embaixada dos Estados Unidos. O fato de os protestos da juventude helênica visarem aos Estados Unidos (e, incidentalmente, ao Reino Unido) se deve às memórias do chamado regime dos coronéis gregos (1967-1974), e ao suposto apoio que esta ditadura militar teve de Washington.
De hábito, grande parte dessas manifestações são pacíficas. Impressiona, outrossim, a organização de tais movimentos. A despeito dos excessos da repressão – com a utilização profusa do gás lacrimogêneo, comumente utilizado de forma ilegal pelos policiais – os estudantes se mantêm ordenados, as fileiras ligadas pelos braços dobrados, o que semelha reminiscente da falange macedônica, se bem que desarmada. A formação é mantida, tanto no avanço, quanto na retirada, o que espelha seja a unidade do movimento universitário, seja a sua força potencial.
O governo da Nova Democracia, chefiado por Costas Karamanlis, tem maioria de apenas uma cadeira em um Parlamento singular de 300 membros. Na oposição estão os sociais democratas de Georgos Papandreou, os comunistas de Aleka Papariga e a coalizão da esquerda radical (Syriza), com Alekos Alavanos. Não obstante a exígua maioria, a Nova Democracia, que já está no segundo mandato, procura implementar sua agenda neoliberal como se dispusesse de amplo respaldo. Há diversos anos, intenta forçar a aprovação de reforma universitária, que, na prática, busca quebrar o monopólio da universidade pública na concessão de diplomas na Grécia. A maior parte dos corpos discente e docente na Grécia se opõe a tal empresa, por nela ver desrespeito ao princípio constitucional do ensino universitário aberto a todos, na base do conhecimento e da gratuidade.
Como sói acontecer, a polícia reagiu a ataque isolado de uma ala mais radical do movimento estudantil com violência desnecessária. Não obstante tentativas de atribuir ao infortúnio a morte do jovem Grigoropoulos, testemunhas oculares confirmaram que o estudante foi intencionalmente atingido por disparo de pistola de um policial. Dada a crescente e generalizada insatisfação nos meios estudantis e em largos segmentos da população, nada terá de surpreendente a eclosão de protestos e depredações não só em Atenas e Salônica, senão em Patras e nas ilhas de Creta e Corfu.
A evolução da crise até o presente não tem igualmente surpreendido. O Ministro do Interior, Procópio Pavlopoulos, apresentou ao Primeiro Ministro Karamanlis o seu pedido de exoneração. Pavlopoulos comanda cerca de 45 mil policiais, que, no momento, enfrentam considerável desafio, em resposta ao assassinato do jovem de quinze anos. A reação nas diversas cidades chegou a tal ponto que teria deixado de ser contabilizado pelos bombeiros o número de incidentes (manifestações, lojas avariadas ou destruídas, detenções, prisões,populares e policiais feridos, etc.).
O Presidente da República Helênica, o respeitado Karolos Papoulias, fez um apelo pela manutenção da ordem. Papoulias, que é um antigo militante socialista, dispõe, no regime constitucional grego, do poder que detinham os presidentes na antiga quarta república francesa, isto é, muito pouco além da representação do Estado e das funções cerimoniais.
Por sua vez, ainda de acordo com o esperado, Costas Karamanlis recusou o pedido de demissão de Pavlopoulos. Não se pode, no entanto, afirmar que não será afastado ulteriormente.
Por outro lado, o líder da oposição, Papandreou, ritualmente pediu a demissão de Karamanlis, no que foi acompanhado pelos aliados comunistas e esquerdistas.
No que tange à reação de Karamanlis, tudo dependerá da evolução da crise. Se a exemplo de episódios anteriores, lograr manter sem defecções a sua maioria de 151 contra 149, não é provável que o líder da Nova Democracia se resolva a enfrentar eleições antecipadas.
Sem embargo, a política é e será sempre a arte do possível. Se a situação continuar a deteriorar-se, possíveis desafetos dentro das próprias fileiras governamentais se disporão ao jogo arriscado de contrariar o poder oficial. Nesta hipótese, se a sua base parlamentar fragmentar-se não restará a Karamanlis outra saída senão enfrentar o corredor polonês da eleição antecipada.
Dentro do quadro mutável da crise, tal perspectiva, por ora, não é a mais provável. Não pode, porém, ser descartada.
As manifestações de protesto dos estudantes são um fenômeno comum em Atenas. Em geral, as passeatas dos universitários ou se destinam à praça Sintagma (Constituição), onde se acha o edifício do Parlamento, ou vão mais além, subindo a avenida da Rainha Sofia, para terminarem diante do edifício-bunker da Embaixada dos Estados Unidos. O fato de os protestos da juventude helênica visarem aos Estados Unidos (e, incidentalmente, ao Reino Unido) se deve às memórias do chamado regime dos coronéis gregos (1967-1974), e ao suposto apoio que esta ditadura militar teve de Washington.
De hábito, grande parte dessas manifestações são pacíficas. Impressiona, outrossim, a organização de tais movimentos. A despeito dos excessos da repressão – com a utilização profusa do gás lacrimogêneo, comumente utilizado de forma ilegal pelos policiais – os estudantes se mantêm ordenados, as fileiras ligadas pelos braços dobrados, o que semelha reminiscente da falange macedônica, se bem que desarmada. A formação é mantida, tanto no avanço, quanto na retirada, o que espelha seja a unidade do movimento universitário, seja a sua força potencial.
O governo da Nova Democracia, chefiado por Costas Karamanlis, tem maioria de apenas uma cadeira em um Parlamento singular de 300 membros. Na oposição estão os sociais democratas de Georgos Papandreou, os comunistas de Aleka Papariga e a coalizão da esquerda radical (Syriza), com Alekos Alavanos. Não obstante a exígua maioria, a Nova Democracia, que já está no segundo mandato, procura implementar sua agenda neoliberal como se dispusesse de amplo respaldo. Há diversos anos, intenta forçar a aprovação de reforma universitária, que, na prática, busca quebrar o monopólio da universidade pública na concessão de diplomas na Grécia. A maior parte dos corpos discente e docente na Grécia se opõe a tal empresa, por nela ver desrespeito ao princípio constitucional do ensino universitário aberto a todos, na base do conhecimento e da gratuidade.
Como sói acontecer, a polícia reagiu a ataque isolado de uma ala mais radical do movimento estudantil com violência desnecessária. Não obstante tentativas de atribuir ao infortúnio a morte do jovem Grigoropoulos, testemunhas oculares confirmaram que o estudante foi intencionalmente atingido por disparo de pistola de um policial. Dada a crescente e generalizada insatisfação nos meios estudantis e em largos segmentos da população, nada terá de surpreendente a eclosão de protestos e depredações não só em Atenas e Salônica, senão em Patras e nas ilhas de Creta e Corfu.
A evolução da crise até o presente não tem igualmente surpreendido. O Ministro do Interior, Procópio Pavlopoulos, apresentou ao Primeiro Ministro Karamanlis o seu pedido de exoneração. Pavlopoulos comanda cerca de 45 mil policiais, que, no momento, enfrentam considerável desafio, em resposta ao assassinato do jovem de quinze anos. A reação nas diversas cidades chegou a tal ponto que teria deixado de ser contabilizado pelos bombeiros o número de incidentes (manifestações, lojas avariadas ou destruídas, detenções, prisões,populares e policiais feridos, etc.).
O Presidente da República Helênica, o respeitado Karolos Papoulias, fez um apelo pela manutenção da ordem. Papoulias, que é um antigo militante socialista, dispõe, no regime constitucional grego, do poder que detinham os presidentes na antiga quarta república francesa, isto é, muito pouco além da representação do Estado e das funções cerimoniais.
Por sua vez, ainda de acordo com o esperado, Costas Karamanlis recusou o pedido de demissão de Pavlopoulos. Não se pode, no entanto, afirmar que não será afastado ulteriormente.
Por outro lado, o líder da oposição, Papandreou, ritualmente pediu a demissão de Karamanlis, no que foi acompanhado pelos aliados comunistas e esquerdistas.
No que tange à reação de Karamanlis, tudo dependerá da evolução da crise. Se a exemplo de episódios anteriores, lograr manter sem defecções a sua maioria de 151 contra 149, não é provável que o líder da Nova Democracia se resolva a enfrentar eleições antecipadas.
Sem embargo, a política é e será sempre a arte do possível. Se a situação continuar a deteriorar-se, possíveis desafetos dentro das próprias fileiras governamentais se disporão ao jogo arriscado de contrariar o poder oficial. Nesta hipótese, se a sua base parlamentar fragmentar-se não restará a Karamanlis outra saída senão enfrentar o corredor polonês da eleição antecipada.
Dentro do quadro mutável da crise, tal perspectiva, por ora, não é a mais provável. Não pode, porém, ser descartada.
domingo, 7 de dezembro de 2008
O Ocaso do Ditador Robert Mugabe
Robert Mugabe, líder da luta pela independência contra Ian Smith, na antiga Rodésia, encontra-se há 28 anos no poder. Infelizmente, Mugabe, com o correr dos anos, se transformou em verdadeira caricatura trágica de tantos outros líderes africanos. Os defeitos de Mugabe – corrupção, demagogia, autoritarismo - são partilhados por muitos deles, mas o presidente do Zimbábue, pelos próprias excessos e incompetência, tende a tornar desconfortável a posição de muitos chefes de estado africanos.
Com efeito, talvez por temor de abertura de precedente, a maioria da Organização de Unidade Africana tende a cerrar fileiras em apoio a Mugabe, que é verdadeiro pária internacional, contestado pela União Européia e os Estados Unidos. Assim, a presença de Mugabe na II Conferência de Cúpula União Européia – Africa, em Lisboa (dezembro de 2007) foi garantida através de uma dispensa especial (existe proibição de que Mugabe viaje para a Europa). Obviamente, a ‘vitória’ africana assegurando a presença de Mugabe na reunião de líderes europeus não teve qualquer resultado prático, a par de desviar as atenções para as questões importantes a serem aí discutidas e possibilitar ao velho ditador uma viagem a Lisboa.
É difícil determinar qual critério será julgado suficiente para que afinal a OUA colabore para criar condições para o afastamento do octogenário Mugabe. Nesse sentido, não há decerto escassez de motivos.
Com efeito, Mugabe, após um período governamental de relativa calma, resolveu tomar um caminho oposto àquele seguido por Nelson Mandela na África do Sul. Após 1998, Mugabe iniciou, sob o pretexto de reforma agrária, a desapropriação de terras de propriedade de nacionais do Zimbábue de origem européia. Dentro de atmosfera de confrontação e intimidação, rompeu-se a paz social existente. Para aquelas propriedades de brancos não incluídas na chamada reforma agrária, a administração de Mugabe incentivou igualmente a invasão, pelos ditos ‘veteranos’ da guerra civil, das fazendas ou sítios. Muita vez, o escopo era o saqueio de tais propriedades, acompanhado de sua depredação. Para aqueles que resistiam, ao invés de fugir, a morte passou a ser a alternativa. Diante do clima de terror instaurado, compreende-se o abandono massivo das propriedades agrícolas, e a sua entrega aos ‘veteranos’ da guerra civil, na verdade designação genérica para cobrir os partidários do governo. O resultado prático dessa política demagógica e racista foi a quebra na produção agrícola, eis que os novos possuidores não dispunham de mínimo conhecimento da técnicas agrícolas. A abrupta e generalizada queda na produção da agricultura foi a inevitável conseqüência da ‘política’ de Robert Mugabe.
Surgiu então a inflação que o desgoverno de Mugabe, fundado na corrupção e no favorecimento de camaradas e sequazes, teria forçosamente de acentuar e de agravar. Atualmente o Zimbábue enfrenta a hiper-inflação, alcançando as inacreditáveis alturas de 231 milhões por cento ao ano. Estando a inflação totalmente fora de controle, não se pode imaginar qualquer atividade econômica que não seja a predatória, como o grassar do mercado negro. As conseqüências sociais, como a pauperização crescente, a débacle dos serviços do Estado (excluídas as atividades policiescas, baseadas na concussão, entre outros delitos do código penal) favorecem a degradação da higiene e de condições sanitárias minimamente aceitáveis, como a atual epidemia de cólera o demonstra de forma irretorquível. A desagregação da administração no Zimbábue é vista nos 12.500 casos declarados a partir de agosto, e nas 560 mortes causadas por essa enfermidade, que se propaga na imundície, e pela falta de atenção médica.
Já em novembro, o regime de Mugabe impedira o ingresso no país do ex-presidente Jimmy Carter e do ex-Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan. Considerou intervenção inadmissível na soberania do Zimbábue a visita que se propunha avaliar as críticas condições humanitárias aí existentes.
Antes de examinar os intentos realizados até agora de criar saída política para o impasse simbolizado pelo regime corrupto e incompetente de Mugabe, cabe uma vista sumária do processo político recente.
No primeiro turno da eleição presidencial, a 29 de março de 2008, o candidato do MDC (oposição), Morgan Tsvangirai, obteve 47,9% dos sufrágios, e o presidente Mugabe (ZANU-PF) colheu 43,2%. A maioria relativa obtida por Tsvangirai semelha ainda mais respeitável, atendido o fato de que a apuração foi realizada por órgão controlado pelo regime, com suspeita de recurso à fraude. Consoante a oposição, Tsvangirai teria obtido 50,4%, havendo sido ‘ajustados’ os seus totais para 47,9% de forma a impedir que alcançando a maioria absoluta vencesse o pleito presidencial.
Já no segundo turno, após campanha generalizada de intimidação – que abrangeu não só os eleitores e seus familiares, havidos como simpatizantes do MDC, senão dos próprios dirigentes do MDC, com detenções abusivas e um acosso desmedido. A situação se deteriorou a tal ponto que Morgan Tsvangirai preferiu retirar o seu nome da cédula. Diante dos processos a que recorreu o regime de Mugabe, e o despudorado desrespeito a garantias e condições mínimas de uma eleição legítima (e não pleitos nos modelos do Uzbequistão e da Bielo-Rússia, por exemplo), agravou-se a geral desmoralização do regime de Mugabe. Para a comunidade internacional, faleciam as eventuais características democráticas no Zimbábue, com a patente ilegitimidade do segundo turno.
Por que se permitiu que a situação no Zimbábue apodrecesse a tal ponto ? A busca de responsáveis não se afigura longa, nem díficil. O sucessor de Nelson Mandela na presidência da Africa do Sul, Thabo Mbeki (afastado a 24 de setembro de 2008) mostrou-se estranhamente complacente com os reiterados abusos de Mugabe e de seus comparsas. Não obstante, a corrente migratória de naturais de Zimbábue que se transferiu para a África do Sul, tangida pela deterioração econômica naquele país, Mbeki sempre se absteve de tomar medidas mais enérgicas que constrangessem Mugabe a mudanças na sua política e nos seus métodos.
Fora do poder, Mbeki aceitou mediar a situação no Zimbábue. No entanto, a suposta partilha do poder, assinada por Mugabe e Tsvangirai a quinze de setembro último, cometeu o erro de privilegiar as aparências de poder e não os seus aspectos essenciais. O fato de o lider da oposição ter sido guindado ao cargo de Primeiro Ministro pouco ou nada significa se os mecanismos do poder permanecem sob o controle de Mugabe e de seus partidários. Foi o que efetivamente ocorreu, eis que o velho presidente não se dispõs a colocar na quota do MDC nenhum ministério que assegurasse real participação no governo do país ao movimento de Tsvangirai.
A falha de Thabo Mbeki resta ainda mais marcada se a compararmos com a atuação do ex-Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, como mediador da crise no Quênia. Diante da fraude manifesta na eleição presidencial, Annan orientou o seu trabalho no sentido de obter a governabilidade no Quênia, forçando o acordo entre o Presidente Mwai Kibaki e o líder da oposição Raila Odinga. Os ministérios foram partilhados não de forma numérica, mas de maneira a assegurar um equilíbrio de poder entre Kibaki e Odinga, superando, dessarte, a confrontação entre os dois partidos, que tinha causado mais de quinhentos mortos. Pela competência de Kofi Annan se alcançou em Nairobi, o que não foi obtido em Harare.
Atualmente, se sucedem os pedidos de afastamento de Mugabe, da Secretária-de-Estado Condoleeza Rice, do Primeiro Ministro Gordon Brown, do Arcebispo, prêmio Nobel da Paz, Desmond Tutu, e do Primeiro Ministro do Quênia, Odinga (que deseja afastar um mal com outro mal – o golpe militar).
Por uma ironia africana, enquanto representou um perigo apenas para o seu sofrido povo, Mugabe tem logrado manter-se no poder, seja através de uma falsa solidariedade, seja pela negligência e incompetência de líderes que poderiam abreviar esse penoso fim. Agora, em que a patética incapacidade de Mugabe pode representar uma ameaça para os países vizinhos e talvez mais além, o que não tinha prioridade passa a ter. Esperemos que à nação do Zimbábue estejam reservados melhores dias.
Com efeito, talvez por temor de abertura de precedente, a maioria da Organização de Unidade Africana tende a cerrar fileiras em apoio a Mugabe, que é verdadeiro pária internacional, contestado pela União Européia e os Estados Unidos. Assim, a presença de Mugabe na II Conferência de Cúpula União Européia – Africa, em Lisboa (dezembro de 2007) foi garantida através de uma dispensa especial (existe proibição de que Mugabe viaje para a Europa). Obviamente, a ‘vitória’ africana assegurando a presença de Mugabe na reunião de líderes europeus não teve qualquer resultado prático, a par de desviar as atenções para as questões importantes a serem aí discutidas e possibilitar ao velho ditador uma viagem a Lisboa.
É difícil determinar qual critério será julgado suficiente para que afinal a OUA colabore para criar condições para o afastamento do octogenário Mugabe. Nesse sentido, não há decerto escassez de motivos.
Com efeito, Mugabe, após um período governamental de relativa calma, resolveu tomar um caminho oposto àquele seguido por Nelson Mandela na África do Sul. Após 1998, Mugabe iniciou, sob o pretexto de reforma agrária, a desapropriação de terras de propriedade de nacionais do Zimbábue de origem européia. Dentro de atmosfera de confrontação e intimidação, rompeu-se a paz social existente. Para aquelas propriedades de brancos não incluídas na chamada reforma agrária, a administração de Mugabe incentivou igualmente a invasão, pelos ditos ‘veteranos’ da guerra civil, das fazendas ou sítios. Muita vez, o escopo era o saqueio de tais propriedades, acompanhado de sua depredação. Para aqueles que resistiam, ao invés de fugir, a morte passou a ser a alternativa. Diante do clima de terror instaurado, compreende-se o abandono massivo das propriedades agrícolas, e a sua entrega aos ‘veteranos’ da guerra civil, na verdade designação genérica para cobrir os partidários do governo. O resultado prático dessa política demagógica e racista foi a quebra na produção agrícola, eis que os novos possuidores não dispunham de mínimo conhecimento da técnicas agrícolas. A abrupta e generalizada queda na produção da agricultura foi a inevitável conseqüência da ‘política’ de Robert Mugabe.
Surgiu então a inflação que o desgoverno de Mugabe, fundado na corrupção e no favorecimento de camaradas e sequazes, teria forçosamente de acentuar e de agravar. Atualmente o Zimbábue enfrenta a hiper-inflação, alcançando as inacreditáveis alturas de 231 milhões por cento ao ano. Estando a inflação totalmente fora de controle, não se pode imaginar qualquer atividade econômica que não seja a predatória, como o grassar do mercado negro. As conseqüências sociais, como a pauperização crescente, a débacle dos serviços do Estado (excluídas as atividades policiescas, baseadas na concussão, entre outros delitos do código penal) favorecem a degradação da higiene e de condições sanitárias minimamente aceitáveis, como a atual epidemia de cólera o demonstra de forma irretorquível. A desagregação da administração no Zimbábue é vista nos 12.500 casos declarados a partir de agosto, e nas 560 mortes causadas por essa enfermidade, que se propaga na imundície, e pela falta de atenção médica.
Já em novembro, o regime de Mugabe impedira o ingresso no país do ex-presidente Jimmy Carter e do ex-Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan. Considerou intervenção inadmissível na soberania do Zimbábue a visita que se propunha avaliar as críticas condições humanitárias aí existentes.
Antes de examinar os intentos realizados até agora de criar saída política para o impasse simbolizado pelo regime corrupto e incompetente de Mugabe, cabe uma vista sumária do processo político recente.
No primeiro turno da eleição presidencial, a 29 de março de 2008, o candidato do MDC (oposição), Morgan Tsvangirai, obteve 47,9% dos sufrágios, e o presidente Mugabe (ZANU-PF) colheu 43,2%. A maioria relativa obtida por Tsvangirai semelha ainda mais respeitável, atendido o fato de que a apuração foi realizada por órgão controlado pelo regime, com suspeita de recurso à fraude. Consoante a oposição, Tsvangirai teria obtido 50,4%, havendo sido ‘ajustados’ os seus totais para 47,9% de forma a impedir que alcançando a maioria absoluta vencesse o pleito presidencial.
Já no segundo turno, após campanha generalizada de intimidação – que abrangeu não só os eleitores e seus familiares, havidos como simpatizantes do MDC, senão dos próprios dirigentes do MDC, com detenções abusivas e um acosso desmedido. A situação se deteriorou a tal ponto que Morgan Tsvangirai preferiu retirar o seu nome da cédula. Diante dos processos a que recorreu o regime de Mugabe, e o despudorado desrespeito a garantias e condições mínimas de uma eleição legítima (e não pleitos nos modelos do Uzbequistão e da Bielo-Rússia, por exemplo), agravou-se a geral desmoralização do regime de Mugabe. Para a comunidade internacional, faleciam as eventuais características democráticas no Zimbábue, com a patente ilegitimidade do segundo turno.
Por que se permitiu que a situação no Zimbábue apodrecesse a tal ponto ? A busca de responsáveis não se afigura longa, nem díficil. O sucessor de Nelson Mandela na presidência da Africa do Sul, Thabo Mbeki (afastado a 24 de setembro de 2008) mostrou-se estranhamente complacente com os reiterados abusos de Mugabe e de seus comparsas. Não obstante, a corrente migratória de naturais de Zimbábue que se transferiu para a África do Sul, tangida pela deterioração econômica naquele país, Mbeki sempre se absteve de tomar medidas mais enérgicas que constrangessem Mugabe a mudanças na sua política e nos seus métodos.
Fora do poder, Mbeki aceitou mediar a situação no Zimbábue. No entanto, a suposta partilha do poder, assinada por Mugabe e Tsvangirai a quinze de setembro último, cometeu o erro de privilegiar as aparências de poder e não os seus aspectos essenciais. O fato de o lider da oposição ter sido guindado ao cargo de Primeiro Ministro pouco ou nada significa se os mecanismos do poder permanecem sob o controle de Mugabe e de seus partidários. Foi o que efetivamente ocorreu, eis que o velho presidente não se dispõs a colocar na quota do MDC nenhum ministério que assegurasse real participação no governo do país ao movimento de Tsvangirai.
A falha de Thabo Mbeki resta ainda mais marcada se a compararmos com a atuação do ex-Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, como mediador da crise no Quênia. Diante da fraude manifesta na eleição presidencial, Annan orientou o seu trabalho no sentido de obter a governabilidade no Quênia, forçando o acordo entre o Presidente Mwai Kibaki e o líder da oposição Raila Odinga. Os ministérios foram partilhados não de forma numérica, mas de maneira a assegurar um equilíbrio de poder entre Kibaki e Odinga, superando, dessarte, a confrontação entre os dois partidos, que tinha causado mais de quinhentos mortos. Pela competência de Kofi Annan se alcançou em Nairobi, o que não foi obtido em Harare.
Atualmente, se sucedem os pedidos de afastamento de Mugabe, da Secretária-de-Estado Condoleeza Rice, do Primeiro Ministro Gordon Brown, do Arcebispo, prêmio Nobel da Paz, Desmond Tutu, e do Primeiro Ministro do Quênia, Odinga (que deseja afastar um mal com outro mal – o golpe militar).
Por uma ironia africana, enquanto representou um perigo apenas para o seu sofrido povo, Mugabe tem logrado manter-se no poder, seja através de uma falsa solidariedade, seja pela negligência e incompetência de líderes que poderiam abreviar esse penoso fim. Agora, em que a patética incapacidade de Mugabe pode representar uma ameaça para os países vizinhos e talvez mais além, o que não tinha prioridade passa a ter. Esperemos que à nação do Zimbábue estejam reservados melhores dias.
quarta-feira, 3 de dezembro de 2008
Um Novo Caudilho Venezuelano
A história da Venezuela é rica em caudilhos e longas ditaduras. Em livro publicado pelo Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais,“Venezuela: Visões Brasileiras”(2003), contribuí com estudo sobre “A crise da democracia venezuelana. Relações com os Estados Unidos”. Produto do trabalho apresentado em seminário no Rio de Janeiro, em 2001, a minha apreciação sobre Hugo Chávez já prenuncia juízo sobre a ambigüidade do personagem. A esse propósito, G.Garcia Márquez, em artigo por mim citado, “O Enigma dos dois Chávez” (agosto de 2000), retratava a convivência em uma só pessoa do possível salvador de seu país e do ilusionista, um novo déspota entre tantos.
Se ainda havia então dúvidas sobre a natureza do autêntico Chávez, o passar do tempo cuidou de desfazer tais ilusões. As tendências autoritárias do mandatário venezuelano se delinearam de forma mais marcada depois de ser apeado do poder pelo chamado golpe virtual de abril de 2002. Prontamente reconduzido, por movimento popular com participação de oficiais militares, seu comportamento se enrijeceria nos anos subseqüentes.
Fundado no apoio que o dito golpe da mídia teria recebido do governo Bush, sua postura antiamericana tenderia doravante a radicalizar-se. Por outro lado, a insegurança causada pelo intento de derrubá-lo, e sua atitude pouco firme diante de vicissitudes sofridas no curto espaço de tempo em que esteve fora do poder, terão igualmente contribuído para que enveredasse por práticas antidemocráticas.
Por trás de discurso formalmente democrático, Chávez, a pretexto de uma resistência contra o “império dos Estados Unidos”, no plano externo, vem estreitando laços não só com países com inclinações autoritárias, como a Rússia de Putin e Medvedev, o Vietnam, e o teocrático Irã, de Ahmadinejad, senão com ditaduras como a Bielo-Rússia, de Alexander Lukashenko, a Coréia do Norte, de Kim Jong-il, e a Líbia de Kadafi. Com ambições de liderança latino-americana, a par de frustradas tentativas de intervenção não tão discretas nos negócios internos da Colômbia (apoio às claudicantes FARC) e do Peru (promoção da candidatura de Ollanta Humala em oposição a Alan Garcia), lançou o bloco da Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas), que congrega seis países recepiendários da ajuda de Caracas (desde a minúscula Dominica até Cuba), e conta entre os favorecidos dos petrodólares a Bolívia, de Evo Morales, o Equador, de Rafael Correa, e o Paraguai, de Fernando Lugo. Ainda no campo dessa nova versão da diplomacia do dólar, e de suas conseqüências, corre em foro americano processo contra a alegada ingerência financeira ilegal do regime chavista na recente eleição argentina.
Toda essa munificência de Hugo Chávez se voltaria para a promoção de projeto pessoal de liderança internacional. Enquanto as cotações do barril de petróleo atingiam os US$ 135.00 (maio de 2008), o líder venezuelano poderia crer dispor de fundos a perder de vista para o financiamento de tão variegadas iniciativas (que incluem supostamente subsídios a velhinhos estadunidenses, que estariam desprovidos de maior apoio dos cofres locais). As perspectivas de tais projetos de beneficência (se para simplificar, nos ativermos ao prisma dos interesses de Chávez) sofrem radical mudança, se o barril de petróleo desce agora para os baixios de US$ 47.00. Semelha importante sublinhar nesse contexto a importância que tem a cotação do barril de petróleo como fonte potencial de riqueza para a economia da Venezuela. Mutatis mutandis, o preço do petróleo é determinante para indicar não só a viabilidade de sustentação dos projetos chavistas para a economia de seu país (e sobretudo em seus programas assistencialistas das camadas populacionais de menor renda, que formam o seu principal apoio político), senão para fornecer aportes financeiros aos diversos regimes latino-americanos julgados como próximos de seu ideário bolivariano e socializante. Porque, em outras palavras, o petróleo, se não é uma monocultura, é de longe a principal fonte de riqueza naquele país.
Existe, outrossim, na utilização externa por Chávez dos rendimentos suplementares, havidos com a considerável alça da cotação do petróleo, uma questão de ordem ética e de governança. Até que ponto o cidadão e a economia desse país sul-americano poder-se-ão considerar defraudados pelo substancial emprego dos recursos – que em última análise constituem uma riqueza finita da nação venezuelana – para sustentar distintos projetos de outros regimes e que, a par do polimento da imagem do Presidente Chávez, parecem ter pouca eficácia para o desenvolvimento de empreendimentos de interesse do povo venezuelano.
Tratada, de forma necessariamente sumária, a vertente externa do que poderia chamar-se o projeto chavista, falta-nos examinar as discrepâncias entre o discurso e a práxis, no plano interno. Por ele incluído na Constituição o instituto do ‘recall’ (possibilidade de destituir o presidente pelo voto, durante o curso de seu mandato), venceu com 59% o referendo convocado para tanto pela oposição. Em dezembro de 2006, Hugo Chávez foi reeleito por seis anos. Não obstante o seu mandato extender-se até 2012, Chávez não parece satisfeito em ter a sua existência política confinada em tais termos. Intentou em dezembro de 2007, não só prorrogar o mandato de seis para sete anos, mas sobretudo abrir a possibilidade da reeleição ilimitada. Por primeira vez, sofreu o presidente derrota eleitoral, que, no entanto, não semelha havê-lo tornado mais conformado com os limites temporários do regime democrático.
Logo após a recente eleição, em que a coligação chavista venceu em termos numéricos, mas foi derrotada nos principais centros demográficos, Chávez adota uma dúplice linha de contra-ataque: através de decretos de discutível legalidade, o presidente esvazia a área de competência do governador distrital de Caracas, Antonio Ledezma, encampando cerca de trinta hospitais, o canal Ávila de Tv, 22 cartórios públicos e todas as 93 escolas da rede metropolitana (despacho do correspondente da Folha em Caracas). Por outro lado, relança – o que é também constitucionalmente questionável – a campanha por um novo referendo em busca da reeleição ilimitada. Tal obstinação do tenente-coronel Hugo Chávez, tão tristemente evocativa da ditadura do general Juan Vicente Gómez (1908-1935), relembra o quão desmedida pode ser a hubris do culto personalista do poder.
Por mais que a presença de Chávez busque espraiar-se em todas as esferas do poder constitucional – não o desmentem a pletórica presença na televisão, a inconteste prevalência nas esferas judicial e legislativa -, o medo da resistência democrática – todo regime forte tem os pés de barro da injustiça e do incontrolado temor por ela insuflado – pode mostrar-se em violências policiescas, como na recente expulsão de dirigentes da organização não-governamental Human Rights Watch, por terem ousado divulgar em Caracas relatório de cerca de trezentas páginas sob o título : “Uma década de Chávez – a intolerância política e oportunidades perdidas para o progresso dos direitos humanos na Venezuela”.
Qualquer adjetivação da democracia é uma forma quase transparente ou de limitá-la, ou de negá-la. A lata de lixo da história está repleta de democracias guiadas, populares, responsáveis e vá lá o que seja. A experiência demonstra como a alternativa referendária pode levar à mais absoluta negação do ideal democrático.
Em outro capítulo, ocupar-me-ei das relações de Hugo Chávez com o Brasil.
Se ainda havia então dúvidas sobre a natureza do autêntico Chávez, o passar do tempo cuidou de desfazer tais ilusões. As tendências autoritárias do mandatário venezuelano se delinearam de forma mais marcada depois de ser apeado do poder pelo chamado golpe virtual de abril de 2002. Prontamente reconduzido, por movimento popular com participação de oficiais militares, seu comportamento se enrijeceria nos anos subseqüentes.
Fundado no apoio que o dito golpe da mídia teria recebido do governo Bush, sua postura antiamericana tenderia doravante a radicalizar-se. Por outro lado, a insegurança causada pelo intento de derrubá-lo, e sua atitude pouco firme diante de vicissitudes sofridas no curto espaço de tempo em que esteve fora do poder, terão igualmente contribuído para que enveredasse por práticas antidemocráticas.
Por trás de discurso formalmente democrático, Chávez, a pretexto de uma resistência contra o “império dos Estados Unidos”, no plano externo, vem estreitando laços não só com países com inclinações autoritárias, como a Rússia de Putin e Medvedev, o Vietnam, e o teocrático Irã, de Ahmadinejad, senão com ditaduras como a Bielo-Rússia, de Alexander Lukashenko, a Coréia do Norte, de Kim Jong-il, e a Líbia de Kadafi. Com ambições de liderança latino-americana, a par de frustradas tentativas de intervenção não tão discretas nos negócios internos da Colômbia (apoio às claudicantes FARC) e do Peru (promoção da candidatura de Ollanta Humala em oposição a Alan Garcia), lançou o bloco da Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas), que congrega seis países recepiendários da ajuda de Caracas (desde a minúscula Dominica até Cuba), e conta entre os favorecidos dos petrodólares a Bolívia, de Evo Morales, o Equador, de Rafael Correa, e o Paraguai, de Fernando Lugo. Ainda no campo dessa nova versão da diplomacia do dólar, e de suas conseqüências, corre em foro americano processo contra a alegada ingerência financeira ilegal do regime chavista na recente eleição argentina.
Toda essa munificência de Hugo Chávez se voltaria para a promoção de projeto pessoal de liderança internacional. Enquanto as cotações do barril de petróleo atingiam os US$ 135.00 (maio de 2008), o líder venezuelano poderia crer dispor de fundos a perder de vista para o financiamento de tão variegadas iniciativas (que incluem supostamente subsídios a velhinhos estadunidenses, que estariam desprovidos de maior apoio dos cofres locais). As perspectivas de tais projetos de beneficência (se para simplificar, nos ativermos ao prisma dos interesses de Chávez) sofrem radical mudança, se o barril de petróleo desce agora para os baixios de US$ 47.00. Semelha importante sublinhar nesse contexto a importância que tem a cotação do barril de petróleo como fonte potencial de riqueza para a economia da Venezuela. Mutatis mutandis, o preço do petróleo é determinante para indicar não só a viabilidade de sustentação dos projetos chavistas para a economia de seu país (e sobretudo em seus programas assistencialistas das camadas populacionais de menor renda, que formam o seu principal apoio político), senão para fornecer aportes financeiros aos diversos regimes latino-americanos julgados como próximos de seu ideário bolivariano e socializante. Porque, em outras palavras, o petróleo, se não é uma monocultura, é de longe a principal fonte de riqueza naquele país.
Existe, outrossim, na utilização externa por Chávez dos rendimentos suplementares, havidos com a considerável alça da cotação do petróleo, uma questão de ordem ética e de governança. Até que ponto o cidadão e a economia desse país sul-americano poder-se-ão considerar defraudados pelo substancial emprego dos recursos – que em última análise constituem uma riqueza finita da nação venezuelana – para sustentar distintos projetos de outros regimes e que, a par do polimento da imagem do Presidente Chávez, parecem ter pouca eficácia para o desenvolvimento de empreendimentos de interesse do povo venezuelano.
Tratada, de forma necessariamente sumária, a vertente externa do que poderia chamar-se o projeto chavista, falta-nos examinar as discrepâncias entre o discurso e a práxis, no plano interno. Por ele incluído na Constituição o instituto do ‘recall’ (possibilidade de destituir o presidente pelo voto, durante o curso de seu mandato), venceu com 59% o referendo convocado para tanto pela oposição. Em dezembro de 2006, Hugo Chávez foi reeleito por seis anos. Não obstante o seu mandato extender-se até 2012, Chávez não parece satisfeito em ter a sua existência política confinada em tais termos. Intentou em dezembro de 2007, não só prorrogar o mandato de seis para sete anos, mas sobretudo abrir a possibilidade da reeleição ilimitada. Por primeira vez, sofreu o presidente derrota eleitoral, que, no entanto, não semelha havê-lo tornado mais conformado com os limites temporários do regime democrático.
Logo após a recente eleição, em que a coligação chavista venceu em termos numéricos, mas foi derrotada nos principais centros demográficos, Chávez adota uma dúplice linha de contra-ataque: através de decretos de discutível legalidade, o presidente esvazia a área de competência do governador distrital de Caracas, Antonio Ledezma, encampando cerca de trinta hospitais, o canal Ávila de Tv, 22 cartórios públicos e todas as 93 escolas da rede metropolitana (despacho do correspondente da Folha em Caracas). Por outro lado, relança – o que é também constitucionalmente questionável – a campanha por um novo referendo em busca da reeleição ilimitada. Tal obstinação do tenente-coronel Hugo Chávez, tão tristemente evocativa da ditadura do general Juan Vicente Gómez (1908-1935), relembra o quão desmedida pode ser a hubris do culto personalista do poder.
Por mais que a presença de Chávez busque espraiar-se em todas as esferas do poder constitucional – não o desmentem a pletórica presença na televisão, a inconteste prevalência nas esferas judicial e legislativa -, o medo da resistência democrática – todo regime forte tem os pés de barro da injustiça e do incontrolado temor por ela insuflado – pode mostrar-se em violências policiescas, como na recente expulsão de dirigentes da organização não-governamental Human Rights Watch, por terem ousado divulgar em Caracas relatório de cerca de trezentas páginas sob o título : “Uma década de Chávez – a intolerância política e oportunidades perdidas para o progresso dos direitos humanos na Venezuela”.
Qualquer adjetivação da democracia é uma forma quase transparente ou de limitá-la, ou de negá-la. A lata de lixo da história está repleta de democracias guiadas, populares, responsáveis e vá lá o que seja. A experiência demonstra como a alternativa referendária pode levar à mais absoluta negação do ideal democrático.
Em outro capítulo, ocupar-me-ei das relações de Hugo Chávez com o Brasil.
terça-feira, 2 de dezembro de 2008
Política Externa Sul-Americana
Segundo noticia a Revista Veja desta semana, o Presidente Lula teria decidido retirar de seu Assessor para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia, a competência sobre negociações políticas e comerciais sul-americanas, restituindo-a ao Itamaraty. Se confirmada a manutenção dessa diretiva, a devemos saudar como desenvolvimento que atende aos interesses perenes do Estado brasileiro. Na verdade, resulta difícil entender, à luz da razão e da história, que um Presidente da República haja optado, em momento anterior, retirar tal competência da Pasta das Relações Exteriores, entregando-a a pessoa de sua confiança, porém sem experiência diplomática.
O que terá motivado o Presidente Lula da Silva a retirar o trato das questões sul-americanas do Itamaraty, entregando-o a um assessor direto seu, não familiarizado com a prática diplomática ? O que sequer o regime militar havia ousado, mantendo, mesmo nos anos de chumbo, a direção do Itamaraty e das questões externas, sob a responsabilidade de diplomatas de carreira ou de políticos de grande prestígio, sem qualquer intervenção castrense,- o que não se pode afirmar dos outros ministérios -, Lula ousou fazê-lo, ao arrepio de longa tradição, tanto do Império quanto da República. Na verdade, bastaria conhecimento elementar de história, para que se tivesse presente que o renome do Ministério dos Negócios Estrangeiros durante o Império, e do que passou a ser chamado de Itamaraty nos primeiros anos da República, junto aos demais governos sul-americanos não era criação fantasiosa, mas sim o reflexo de tradição de seriedade, competência e, last but not least, coerência na defesa da paz, das boas relações com nossos vizinhos, e dos interesses da Nação brasileira.
O Barão do Rio Branco, patrono de nossa diplomacia, não foi uma avis rara, que terá surgido do nada. Silva Paranhos foi o continuador de longa tradição, que começa com Alexandre de Gusmão, secretário de D. João V, e verdadeiro negociador do Tratado de Madrid, que desenhou o formato aproximado de nossas fronteiras. Esta tradição lhe foi repassada por seu pai, o Visconde do Rio Branco, político de nomeada no Segundo Reinado, que ocupou o Ministério dos Negócios Estrangeiros, a par de ser Presidente do Conselho de Sua Majestade o Imperador.
Tal decisão do Presidente Lula, que não está decerto dentre aquelas de que desejará recordar-se no futuro, se deverá, outrossim, a diversos outros fatores, de índole pessoal e conjuntural. Limitar-me-ei aqui à experiência pregressa de Luiz Inácio Lula da Silva, que o terá também induzido, ignorando o tácito conselho de seus maiores, a proceder à radical mudança de metodologia no trato das questões sul-americanas.
Essa desenvoltura diplomática decorre de certa maneira de uma ambigüidade na visão política do Presidente, que tende a projetar a sua experiência como dirigente sindical para as questões políticas gerais. Se não cabe neste contexto considerar a política interna, parece-me oportuno assinalar algumas diferenças epistêmicas entre sindicalismo e diplomacia. As relações entre os Estados se baseiam no respeito mútuo, sendo desenvolvidas no caso por países soberanos com larga prática de inter-relação. O agente sindical busca o melhor para a sua categoria, dentro do quadro do Estado em que está inserido, e a cujas normas se acha subordinado. Em relações internacionais resulta complicado – para usar um termo atual – e perigoso desconhecer os interesses maiores do Estado, com vistas a privilegiar considerações ideológicas, que se sobreporiam às próprias conveniências do Estado.
Já ensina a sabedoria popular que não é bom misturar critérios, nem alterar orientações cuja eficácia a experiência pregressa tenha comprovado. Nos últimos tempos a diplomacia de cariz sindical vinha apresentando folha corrida com episódios como a ocupação, sob ordens do Presidente Evo Morales, pelo exército boliviano, de refinarias da Petrobrás, concretas ameaças de expropriação de produtores brasileiros de soja (os ditos brasiguaios) pelo novel governo paraguaio do ex-bispo Fernando Lugo, e a investida do presidente Rafael Correa, do Equador, contra a Odebrecht, e o seu propósito de não honrar dívida de US$ 250 milhões. Tudo isso sem falar das maquinações do ‘muy amigo’ caudilho venezuelano Hugo Chávez, a última das quais resolução do bloco ‘Alba’ (Alternativa Bolivariana para as Américas), que respaldou o pretenso direito equatoriano de questionar a legalidade de sua dívida externa, contraída em função de empréstimo do BNDES.
Ainda que tardia, saudemos, portanto, a restituição da competência na negociação política de um velho e comprovado instrumento do Estado brasileiro.
O que terá motivado o Presidente Lula da Silva a retirar o trato das questões sul-americanas do Itamaraty, entregando-o a um assessor direto seu, não familiarizado com a prática diplomática ? O que sequer o regime militar havia ousado, mantendo, mesmo nos anos de chumbo, a direção do Itamaraty e das questões externas, sob a responsabilidade de diplomatas de carreira ou de políticos de grande prestígio, sem qualquer intervenção castrense,- o que não se pode afirmar dos outros ministérios -, Lula ousou fazê-lo, ao arrepio de longa tradição, tanto do Império quanto da República. Na verdade, bastaria conhecimento elementar de história, para que se tivesse presente que o renome do Ministério dos Negócios Estrangeiros durante o Império, e do que passou a ser chamado de Itamaraty nos primeiros anos da República, junto aos demais governos sul-americanos não era criação fantasiosa, mas sim o reflexo de tradição de seriedade, competência e, last but not least, coerência na defesa da paz, das boas relações com nossos vizinhos, e dos interesses da Nação brasileira.
O Barão do Rio Branco, patrono de nossa diplomacia, não foi uma avis rara, que terá surgido do nada. Silva Paranhos foi o continuador de longa tradição, que começa com Alexandre de Gusmão, secretário de D. João V, e verdadeiro negociador do Tratado de Madrid, que desenhou o formato aproximado de nossas fronteiras. Esta tradição lhe foi repassada por seu pai, o Visconde do Rio Branco, político de nomeada no Segundo Reinado, que ocupou o Ministério dos Negócios Estrangeiros, a par de ser Presidente do Conselho de Sua Majestade o Imperador.
Tal decisão do Presidente Lula, que não está decerto dentre aquelas de que desejará recordar-se no futuro, se deverá, outrossim, a diversos outros fatores, de índole pessoal e conjuntural. Limitar-me-ei aqui à experiência pregressa de Luiz Inácio Lula da Silva, que o terá também induzido, ignorando o tácito conselho de seus maiores, a proceder à radical mudança de metodologia no trato das questões sul-americanas.
Essa desenvoltura diplomática decorre de certa maneira de uma ambigüidade na visão política do Presidente, que tende a projetar a sua experiência como dirigente sindical para as questões políticas gerais. Se não cabe neste contexto considerar a política interna, parece-me oportuno assinalar algumas diferenças epistêmicas entre sindicalismo e diplomacia. As relações entre os Estados se baseiam no respeito mútuo, sendo desenvolvidas no caso por países soberanos com larga prática de inter-relação. O agente sindical busca o melhor para a sua categoria, dentro do quadro do Estado em que está inserido, e a cujas normas se acha subordinado. Em relações internacionais resulta complicado – para usar um termo atual – e perigoso desconhecer os interesses maiores do Estado, com vistas a privilegiar considerações ideológicas, que se sobreporiam às próprias conveniências do Estado.
Já ensina a sabedoria popular que não é bom misturar critérios, nem alterar orientações cuja eficácia a experiência pregressa tenha comprovado. Nos últimos tempos a diplomacia de cariz sindical vinha apresentando folha corrida com episódios como a ocupação, sob ordens do Presidente Evo Morales, pelo exército boliviano, de refinarias da Petrobrás, concretas ameaças de expropriação de produtores brasileiros de soja (os ditos brasiguaios) pelo novel governo paraguaio do ex-bispo Fernando Lugo, e a investida do presidente Rafael Correa, do Equador, contra a Odebrecht, e o seu propósito de não honrar dívida de US$ 250 milhões. Tudo isso sem falar das maquinações do ‘muy amigo’ caudilho venezuelano Hugo Chávez, a última das quais resolução do bloco ‘Alba’ (Alternativa Bolivariana para as Américas), que respaldou o pretenso direito equatoriano de questionar a legalidade de sua dívida externa, contraída em função de empréstimo do BNDES.
Ainda que tardia, saudemos, portanto, a restituição da competência na negociação política de um velho e comprovado instrumento do Estado brasileiro.
segunda-feira, 1 de dezembro de 2008
Mudança ?
É sempre difícil propor-se a ajuizar a evolução política. Encareço, portanto, ao leitor deste artigo que tenha presente tal condicionante. Barack Obama venceu a sua grande batalha para alcançar a presidência dos Estados Unidos sob o signo da mudança. Foi com este lema que atraíu o voto dos jovens e de parte substancial da intelectualidade, criando a força inercial para criar um movimento com aura de vitorioso – o que colocou a mídia de seu lado – convencendo a maioria dos superdelegados da inevitabilidade de sua candidatura. Tornou, em conseqüência, a campanha de Hillary Clinton fadada ao malogro, por mais primárias importantes que lograsse empolgar a senadora por New York. Um momento! ouço o seu murmúrio de estranheza. O triunfo de Obama foi contra John McCain, o candidato republicano ! Terá sido mesmo ? Na verdade, revendo a trajetória, verifica-se que o senador por Arizona jamais ameaçou realmente o candidato democrata, não obstante o aporte controverso de Sarah Palin. Se o embate Obama – McCain não foi uma formalidade, nunca terá realmente posto em dúvida a vitória inelutável do senador por Illinois, o que não se pode dizer da contenda das longas primárias (de janeiro a junho !) contra Hillary.
Voltemos, porém, ao presente e ao futuro próximo. Vencedor indiscutível, sob o signo da mudança, com o controle do Senado e da Câmara de Representantes, as veiculadas indicações para o Gabinete e os principais cargos econômicos, Obama tem recebido elogios da direita republicana (Karl Rove, o criador de Bush júnior: formou “time econômico de primeira”; e o Wall Street Journal – “Gates e Jones são sinais bem-vindos de continuidade”). Em contraparte, nota-se certa preocupação entre os democratas com os rumos da vindoura Administração, conquanto a maioria dê ao correligionário o esperado apoio. Na esquerda, contudo, as críticas já repontam, como as de William Greider, da revista “Nation”, ao referir que o suposto virar de página, com um novo começo para os hábitos de Washington, na verdade “seria uma página virada para trás”.
A história ensina que muita vez o candidato progressista prevalece nos comícios com uma plataforma de esquerda, para governar com o centro ou até mesmo a direita. Outra premissa que não deve ser ignorada será que, a despeito das aparências, não é aconselhável desfazer de uma Administração nova, antes que lhe seja dada a oportunidade de mostrar ao que veio.
Qual a razão, no entanto, de tais preocupações ? Elas residem, sobretudo, em determinadas escolhas de Obama – no que me baseio em prognósticos alegadamente bem-informados da imprensa americana. Dentre os nomes apresentados, provocam estranheza o do general reformado Jim Jones, para Conselheiro de Segurança Nacional, e, particularmente, a confirmação do atual Secretário de Defesa, Robert Gates. Para quem construíu a sua proposta política com o discurso contra a guerra no Iraque, será compreensível a perplexidade na acolhida do sucessor de Donald Rumsfeld no Pentágono. É bom recordar que Gates, além de auxiliar direto de Bush júnior, está associado à chamada estratégia do “surge”(recrudescimento) no Iraque, orquestrada pelo general-comandante Petraeus. Cabe a pergunta de que como tal indicação se concilia com o ideário de quem foi eleito com base na oposição à desastrosa guerra de George Bush, e seus mentores neo-conservadores. Por outro lado, o propalado Assessor para a Segurança Nacional, cargo importante não só para a formulação, senão para a implementação da política externa - entre seus antecessores, estão Henry Kissinger (auxiliar de Nixon) e Zbigniew Brzezinski (auxiliar de Carter)-, é amigo de John McCain, de quem se especula Jim Jones seria igualmente o Assessor.
É importante, todavia, que se assinale que tais indicações estariam dentro da suposta “cota republicana”, na futura Administração Obama. Assumindo em um período de guerra – o longínquo precedente histórico estaria na passagem de Lyndon Johnson para Richard Nixon, em plena guerra do Vietnam, em 1968 – e sob a crescente ameaça de agravamento da crise financeira, compreende-se que Obama tenha de costurar apoio bipartidário para superar o vácuo de poder criado por um presidente desmoralizado e nos dias finais do mandato e um novo presidente, com grande respaldo popular, mas sem nenhum poder efetivo até o dia vinte de janeiro de 2009.
Por outro lado, o gabinete de Barack Obama tem outros nomes que, descontadas as rituais e inevitáveis reservas da imprensa, são merecedores de bons prognósticos, como Eric Holder, para Secretário de Justiça, Timothy Geithner, para Secretário do Tesouro, e, last but not least, Hillary Clinton, para Secretária de Estado. Com efeito, Holder, que foi subsecretário de justiça na Administração de Bill Clinton, será o primeiro negro a ocupar a prestigiosa e relevante função de Attorney General (Procurador Geral), e para que se tenha noção da descomunal melhora basta recordar alguns dos notórios ocupantes desse cargo durante a Administração de Bush júnior. Geithner, por sua vez, é o presente Diretor do Federal Reserve de New York, apartidário, e tem bom trânsito junto ao chamado mercado, sendo um dos fautores do plano de resgate financeiro. Por fim, Hillary Clinton, cujo nome dispensa apresentações, trará o apoio de grande parte do partido democrata. Experiente em questões internacionais, é a política mais importante dos correligionários de Bill Clinton, que semelha ser o grande celeiro nas indicações para a Administração Obama.
Ao concluir essas considerações, condicionadas como é óbvio às implacáveis correções da progressão política, tenha-se em mente o desafio enfrentado por Obama. Na realidade, dados os sombrios augúrios da finança internacional, que prevê queda de 3,5% no PIB estadunidense e de um 1,5% para a União Européia e o Japão, não se afigura exagero comparar o momento histórico presente com a situação afrontada por Franklin Delano Roosevelt, sob o dobre do Crash de 1929 e a da conseqüente Depressão – que arrastou junto o governo republicano de Herbert Hoover. Todos nós temos interesse em que Barack Obama - e sua Administração - esteja à altura deste desafio, e que saiba dar, no sentido toynbeeano da expressão, a resposta adequada para gáudio geral.
Voltemos, porém, ao presente e ao futuro próximo. Vencedor indiscutível, sob o signo da mudança, com o controle do Senado e da Câmara de Representantes, as veiculadas indicações para o Gabinete e os principais cargos econômicos, Obama tem recebido elogios da direita republicana (Karl Rove, o criador de Bush júnior: formou “time econômico de primeira”; e o Wall Street Journal – “Gates e Jones são sinais bem-vindos de continuidade”). Em contraparte, nota-se certa preocupação entre os democratas com os rumos da vindoura Administração, conquanto a maioria dê ao correligionário o esperado apoio. Na esquerda, contudo, as críticas já repontam, como as de William Greider, da revista “Nation”, ao referir que o suposto virar de página, com um novo começo para os hábitos de Washington, na verdade “seria uma página virada para trás”.
A história ensina que muita vez o candidato progressista prevalece nos comícios com uma plataforma de esquerda, para governar com o centro ou até mesmo a direita. Outra premissa que não deve ser ignorada será que, a despeito das aparências, não é aconselhável desfazer de uma Administração nova, antes que lhe seja dada a oportunidade de mostrar ao que veio.
Qual a razão, no entanto, de tais preocupações ? Elas residem, sobretudo, em determinadas escolhas de Obama – no que me baseio em prognósticos alegadamente bem-informados da imprensa americana. Dentre os nomes apresentados, provocam estranheza o do general reformado Jim Jones, para Conselheiro de Segurança Nacional, e, particularmente, a confirmação do atual Secretário de Defesa, Robert Gates. Para quem construíu a sua proposta política com o discurso contra a guerra no Iraque, será compreensível a perplexidade na acolhida do sucessor de Donald Rumsfeld no Pentágono. É bom recordar que Gates, além de auxiliar direto de Bush júnior, está associado à chamada estratégia do “surge”(recrudescimento) no Iraque, orquestrada pelo general-comandante Petraeus. Cabe a pergunta de que como tal indicação se concilia com o ideário de quem foi eleito com base na oposição à desastrosa guerra de George Bush, e seus mentores neo-conservadores. Por outro lado, o propalado Assessor para a Segurança Nacional, cargo importante não só para a formulação, senão para a implementação da política externa - entre seus antecessores, estão Henry Kissinger (auxiliar de Nixon) e Zbigniew Brzezinski (auxiliar de Carter)-, é amigo de John McCain, de quem se especula Jim Jones seria igualmente o Assessor.
É importante, todavia, que se assinale que tais indicações estariam dentro da suposta “cota republicana”, na futura Administração Obama. Assumindo em um período de guerra – o longínquo precedente histórico estaria na passagem de Lyndon Johnson para Richard Nixon, em plena guerra do Vietnam, em 1968 – e sob a crescente ameaça de agravamento da crise financeira, compreende-se que Obama tenha de costurar apoio bipartidário para superar o vácuo de poder criado por um presidente desmoralizado e nos dias finais do mandato e um novo presidente, com grande respaldo popular, mas sem nenhum poder efetivo até o dia vinte de janeiro de 2009.
Por outro lado, o gabinete de Barack Obama tem outros nomes que, descontadas as rituais e inevitáveis reservas da imprensa, são merecedores de bons prognósticos, como Eric Holder, para Secretário de Justiça, Timothy Geithner, para Secretário do Tesouro, e, last but not least, Hillary Clinton, para Secretária de Estado. Com efeito, Holder, que foi subsecretário de justiça na Administração de Bill Clinton, será o primeiro negro a ocupar a prestigiosa e relevante função de Attorney General (Procurador Geral), e para que se tenha noção da descomunal melhora basta recordar alguns dos notórios ocupantes desse cargo durante a Administração de Bush júnior. Geithner, por sua vez, é o presente Diretor do Federal Reserve de New York, apartidário, e tem bom trânsito junto ao chamado mercado, sendo um dos fautores do plano de resgate financeiro. Por fim, Hillary Clinton, cujo nome dispensa apresentações, trará o apoio de grande parte do partido democrata. Experiente em questões internacionais, é a política mais importante dos correligionários de Bill Clinton, que semelha ser o grande celeiro nas indicações para a Administração Obama.
Ao concluir essas considerações, condicionadas como é óbvio às implacáveis correções da progressão política, tenha-se em mente o desafio enfrentado por Obama. Na realidade, dados os sombrios augúrios da finança internacional, que prevê queda de 3,5% no PIB estadunidense e de um 1,5% para a União Européia e o Japão, não se afigura exagero comparar o momento histórico presente com a situação afrontada por Franklin Delano Roosevelt, sob o dobre do Crash de 1929 e a da conseqüente Depressão – que arrastou junto o governo republicano de Herbert Hoover. Todos nós temos interesse em que Barack Obama - e sua Administração - esteja à altura deste desafio, e que saiba dar, no sentido toynbeeano da expressão, a resposta adequada para gáudio geral.
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