Ao ver o desalento do professor Pasquale Cipro Neto, mostrando toda uma prateleira de livros tornados obsoletos pela enésima reforma ortográfica – que entrará em pleno vigor em 2012, mas já está sendo aplicada - , ao concordar integralmente com a opinião deste estudioso (e de muitos outros) acerca da inutilidade desta reforma, parece-me forçoso acrescentar mais algumas considerações.
A reforma não é apenas inútil, mas também perniciosa – como deixou implícito Cipro Neto – ao forçar a obsolescência de todos os livros publicados no Brasil – de referência, literários e técnicos – como se a indústria editorial nacional carecesse do artificialismo sistêmico das mudanças anuais da indústria automobilística ou as sazonais da moda.
Em um país de muitas editoras e poucos leitores, uma pessoa de bom senso há de perguntar-se do porquê desses esforços reiterados que no espaço de uma geração são ritualmente impingidos como necessidades inadiáveis aos alfabetizados brasileiros. Procederão as justificativas de ampliar o mercado editorial com a padronização do idioma não só no Brasil e em Portugal, senão nos demais países de língua portuguesa (Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné Bissau, Timor Leste, etc.) ? Decerto as dúvidas expressas são fundadas, mas não creio que se deva tentar entender tal proliferação reformista a partir da análise das argumentações das partes diretamente interessadas nesse processo.
Das Causas. Quando o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou o decreto ratificando o acordo promovido pelas Academias, pensei na frase do estadista francês Georges Clemenceau de que “a guerra é demasiado importante para deixá-la por conta dos generais”. Não, caro leitor, não estou confundindo conflito armado com imposição de reforma ortográfica. O meu raciocínio é de ordem epistêmica e pode igualmente inspirar-se no dito latino “quis custodiet ipsos custodes?” (quem vigiará os vigias ?). Em outras palavras, a reforma ortográfica é demasiado importante para que a deixemos ao arbítrio dos gramáticos e das academias.
Com efeito, o parecer dos ditos especialistas terá seu peso, mas ele deve estar submetido às instâncias do Estado, que julgarão da conveniência ou não da implementação das opiniões setoriais. Deparamos aqui, no entanto,a uma inversão do processo. Como Foucault nos ensina, o poder se manifesta em muitas formas. No caso presente, prepondera a visão técnico-burocrática das academias, erigidas na prática como autoridade máxima, eis que as negociações – e as reformas – por elas encaminhadas são chanceladas pelo poder estatal como se fossem irrecusáveis e inquestionáveis. Depois das negociações entre as academias, e estranhas concessões (como a duvidosa fundamentação para que ideia no Brasil fique sem acento – irrisório agrado ao uso não-acentuado em Portugal), a aprovação pelos poderes do Estado é uma simples formalidade, como se verifica pelos termos com que o Presidente Lula ratificou o acordo. E é bom que se frise, esta atitude de aprovação automática, sem questionamento, caracteriza no particular tanto o atual, quanto o seu imediato antecessor, Fernando Henrique Cardoso.
Infelizmente, a busca da causa não pode deter-se na desenvoltura das academias e na chancela pelo poder estatal. Está aí a herança da colonização, com suas ordenações, sua índole normativa, burocrática e cartorial, a criar uma teia infernal para as atividades tantos comerciais, quanto culturais. O formalismo, as instâncias burocráticas, a pulverização do poder representada por um sem-número de régulos, todos nominalmente prostrados diante da figura distante e quase inatingível de el-Rei será um quadro que terá desaparecido com a Independência ?
Ou será que tais práticas persistem sob outras formas ? Não nos esqueçamos que em tempos da ditadura houve um ministério que se ocupou precipuamente em simplificar as normas burocráticas no Brasil. Terá tido sucesso ? Basta visitar um simples cartório para que vejamos quem vence por ora essa inglória batalha.
Comparações desconfortáveis. Quem foi caracterizado como a autoridade máxima para determinar do acerto ou não de normas derivadas do presente acordo ortográfico, justificou-lhe a assinatura pela circunstância, a seu ver única no mundo, da existência de duas ortografias oficiais do português – a brasileira e a portuguesa. Tive dificuldade em acreditar no que estava ouvindo. Duas ortografias do português únicas no mundo ? E o que dizer das variantes do inglês nos Estados Unidos e na Inglaterra ? Será que a língua inglesa encontra-se em desvantagem nesses dois países, por não estar submetida a nenhuma instância burocrática ? Acresce notar que seja nos Estados Unidos, seja no Reino Unido não houve qualquer reforma no espaço de tempo em que o português – esta última flor do Lácio - pode orgulhar-se de pelo menos três !
Se acrescentarmos o francês – a despeito de lá existir a Académie Française, de onde Machado de Assis copiou a nossa – tampouco há a registrar reformas ortográficas recentes.
Sem as contínuas mudanças a que se submeteu o português, em que estado se acha o inglês (nas suas expressões inglesa e americana) e o francês ? Seriam, porventura, a reificação do atraso ou vão bem, obrigado ? Fico a indagar-me porque ainda não aplicaram o modelo luso-brasileiro, que obriga gerações a reinventar a roda, enquanto os editores tupiniquins permanecem felizes com suas edições de três mil exemplares...
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