Para o turista, também os motoristas de taxi podem ser considerados representativos das respectivas cidades. Em New York, os choferes dos carros amarelos constituem uma espécie de ONU às avessas. Ali encontramos naturais de países os mais ignotos e longínquos, muitos irmanados por quase ininteligíveis sotaques do inglês, o que enseja um congraçamento de não-familiarizados com a língua que foi de Shakespeare que não tende a facilitar a desejável comunicação entre o condutor e visitante estrangeiro. Além disso, boa parte desses taxistas encarnam o que pensam ser o espírito do nova-iorquino, vale dizer o mau humor crônico ou – o que para o usuário vem a dar no mesmo – a má vontade no que tange tanto às intenções turísticas quanto às simples indicações de deslocamento do passageiro.
O chauffeur parisiense não fica a dever ao de Manhattan em termos de maus bofes. Esse mau humor é uma espécie de nuvem preta que há bastante tempo paira sobre muitos deles. Assim, já se encontrava a acompanhar os rabugentos taxistas nos anos de de Gaulle, e que chegavam a rosnar interjeições e outras palavras menos citáveis quando o passageiro não pronunciava corretamente o endereço a que aspirava ser levado. Agora, o serviço não está mais exclusivamente a cargo de gauleses descendentes de Asterix, dele igualmente ocupando-se orientais e africanos. O que não mudou foi o mau humor de quem está na direção, o que poderia ser encarado como esforço de aculturação.
O Rio de Janeiro mostrava no passado pronunciada escassez de carros de praça. Em geral, os taxis eram calhambeques, velhos modelos de Fords ou Chevrolets, com um peculiar e irritante molejo, muitos deles dirigidos por corpulentos portugueses, unidos pela não-irradiante simpatia com seus confrades de além-mar.
Aquele personagem de René Clair, interpretado por Michel Simon, que ritualmente aparecia nas mesas de bar, para com indumentária fora de moda entoar loas aos bons tempos de outrora, se em tantos outros aspectos teria a partida ganha, se veria, no entanto, em maus lençóis nesse particular aspecto do Rio de Janeiro. Pois, nos dias que correm, em termos de oferta, basta chegar junto ao meio-fio em qualquer rua de grande ou razoável circulação, e fazer tímido aceno de que se deseja um taxi, para que não raro esse indivíduo presencie uma Blitzkrieg em miniatura. Com efeito, se dois ou três taxis estiverem nas cercanias, há de desenrolar-se uma ação relâmpago diante do assustado candidato a passageiro. Na incursão rumo à oferta prometida, haverá movimentos que poderão incluir, entre outros, bruscas acelerações e fulminantes fechadas. Ao mais audaz caberá a palma, digo a freada perante o inquieto postulante.
Na verdade, por obra e graça dos últimos prefeitos, o morador da antiga Cidade Maravilhosa passou da penúria extrema para uma pletora de carros de praça. Tal abundância provocou a esfaimada concorrência supra-referida. Em mercado ora dominado pelo consumidor, a maior parte dos taxistas se vê forçada a vagar pela cidade à cata de passageiros. Excluídos os permissionários, que dispõem de licença para conduzir o próprio veículo, os auxiliares, para pagar as altas diárias que lhe são cobradas pelas empresas ou pelos donos dos veículos, não têm escolha senão rodar pelas ruas e avenidas, na busca de fregueses. Daí, a cena acima descrita não é produto da imaginação do cronista, mas da dura realidade das leis do mercado dos taxis no Rio de Janeiro.
Essa situação privilegiada do carioca, se vista do prisma da demanda do transporte por taxi, não me parece seja valorizada na sua devida medida pelo habitante desta cidade. Haveria a propósito maneira infalível de torná-lo entusiasmado usuário do serviço aqui proporcionado.
Não, não me estou referindo a comparações com o passado, sempre de resto um tanto problemáticas, porque tais experiências não costumam ser facilmente transferíveis, dado o natural ceticismo dos mais jovens ou a prevalência de visão mais romântica das décadas de cinqüenta e sessenta, em que a névoa do saudosismo oblitera os defeitos e realça as qualidades de época mais tranqüila e mais segura. O próprio personagem de René Clair surge como uma desmistificação do incorrigível saudosista dos chamados bons tempos de antigamente.
A solução proposta para a valorização do taxista carioca, se é na aparência mais simples, é algo onerosa e só seria aplicável através do efeito demonstração. Tratarei de explicar adiante de forma quiçá menos obscura e nesse sentido encareço a paciência do leitor.
De início, ela implica em viagem à Grécia. Ora, quem não almejaria conhecer Atenas, com o Parthenon, o azul, luzente mar Egeu e suas incontáveis ilhas ?
Além dos encantos da clássica Hellas, berço da civilização ocidental, com suas obras primas de escultura, magníficas ruínas espalhadas pela terra das oliveiras, existe igualmente a Grécia insular, e suas praias, baías, alvas, encarapitadas aldeias e os paredões, falésias e outras belezas naturais de um esgarçado litoral. A par de tantos atrativos – e não mais me estendo para não rivalizar com folhetos turísticos e programas de cruzeiros – haveria talvez outro fator a ser considerado, que, se não é normalmente encarado como motivo suplementar para empreender-se a longa travessia, proporcionaria informações úteis do ponto de vista sócio-antropológico.
Nessa altura, conto com a compreensão do leitor para um parêntese. Sei que lhe será difícil visualizá-lo não só para o usuário no Rio, mas também em São Paulo e Porto Alegre. Não obstante, rogo encarecidamente a sua boa vontade.
Imagine uma esquina de Atenas. É cidade com muitas colinas e esse ponto parece favorável ao pedestre, porque lá existe um sinal, o trânsito se origina de rua que sobe para desembocar num logradouro plano que logo se transformará em descida. Aí está parada uma velhinha, com vestido e casacão preto (é a cor predileta dos gregos, jovens e veteranos). Estamos no inverno, chove e venta. Há algum tempo espera pela oportunidade de embarcar num taxi. Depois de muitos passarem sem deter-se, apesar de se acharem vazios, por fim um dá o que chamaria meia parada. Para o carioca, seria o final feliz da cena, com a entrada da passageira no veículo. Ledo engano, porém, pois o encontro se realiza na Ática. A candidata ao transporte expõe a sua pretensão e o faz com inusitada deferência para os padrões do Rio de Janeiro. Infelizmente, o propósito não foi do agrado do taxista, que se limita a um gesto cansado para seguir viagem.
O imaginário espectador carioca fica perplexo. Porquê o motorista, com o carro vazio, recusou a passageira, que pelo clima e a idade mereceria melhor sorte ? Para começar a entender essa bizarra situação, em que o mando inconteste se acha com o chofer de praça e não com o passageiro, será suficiente um dia em Atenas, seja flanando pelas ruas e bulevares, seja – o que seria pior – engrossando as fileiras dos pedintes de viaturas de aluguel.
Como as tarifas vigentes são julgadas insuficientes pelos taxistas, a primeira regra da corporação é a de não aceitar passageiros que não se adeqüem aos seus interesses de itinerário. As mais das vezes, o taxista ateniense circula como uma lotação virtual. Se o motorista se detiver ao sinal do candidato a passageiro, tal não é decerto indicativo de que vá aceitar mais este postulante. Para o embarque no taxi, o passageiro é um suplicante, e existe de sua parte plena consciência dessa situação de relativa inferioridade.
Outra precisão que semelha oportuna será frisar nada terem de xenofóbico os taxistas atenienses. Se os locais têm melhores condições de lidarem com as modalidades de sua operação, não se pode dizer que os choferes façam distinção entre gregos e troianos (no caso, os estrangeiros).
Entretanto, em termos de conseqüências práticas caberia aqui uma qualificação. Como o turista não tem possibilidades de inserir-se no esquema-lotação, por óbvio desconhecimento das linhas abertas para os atenienses, o único instrumento a seu alcance seria o de oferecer um pagamento muito superior àquele que o taxista coletaria pelo sistema do lotação. Compreende-se, assim, que para valer-se do taxi ele terá na prática de pagar quantias que não só excedem a tarifa local, senão as cotações vigentes nas grandes capitais.
Para o alienígena, impressiona sobremaneira a docilidade do usuário grego em submeter-se às regras procrusteanas dos taxistas. Não é só a circunstância de que Teseu pôs fim há milênios ao bandido Procrustes. Para um povo que rivaliza com o italiano na vivacidade, espanta a submissão de homens jovens e não tão jovens, de exuberantes moças e trêmulas velhinhas, empenhados na respeitosa solicitação de um lugar no transporte. Pouco importará se na esquina é verão resplendente ou se o inverno cai frio e chuvoso. Nada disso pesa na balança. Se não aprouver ao taxista, seja quem for o pedinte terá de esperar pela próxima.
Como se verifica pelas linhas acima, o sistema de táxi urbano na metrópole de Atenas é disfuncional, refletindo uma idiossincrasia corporativa, que pouco ou nada tem a ver com as regras constantes das ordenações municipais. Na verdade, somente capital com o potencial turístico de Atenas se poderia dar o luxo de ter motoristas de taxi que não se enquadram em sistema eficiente de apoio aos turistas. O único consolo para conviver-se com essa realidade seria talvez uma elaboração nos termos abaixo. Sendo as atrações de tal ordem, as deficiências nesse serviço seriam de certo modo minoradas pelo impacto visual de tantas obras memoráveis de escultura e arquitetura, não obstante os efeitos da passagem de mais de dois milênios...
Quero crer que ulteriores explicações seriam desnecessárias. Depois de passagem pela Grécia, e a decorrente experiência com os taxis de Atenas, cresceria em muitos a convicção de que possuímos pelo menos algo que merece o nosso orgulho citadino. Por isso, longa vida aos taxistas cariocas !
quinta-feira, 14 de agosto de 2008
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