Mauro M. de Azeredo
Além das ruinas famosas de Atenas, além de suas largas avenidas e dos edifícios e monumentos, sem esquecer as amplas, generosas vistas que do Pireu descortinam ou prometem miríades de ilhas a embelezar as águas do mar Egeu, sem omitir todo o legado de arte, ciência, filosofia e política que de tais paragens é devedor o Ocidente, ouso pedir a sua atenção para diverso aspecto, a que me permito encarecer um momento de benevolência.
Ao caminhar pelas ruas desta cidade, em meio ao tráfego desordenado e a pedestres afobados, bem cedo me daria conta de outra característica que diverge do cenário habitual das metrópoles.
Pelas calçadas, nas aléias das praças, nas faixas pedonais das ruas, nas soleiras de lojas, entre as loquazes mesinhas dos cafés, eu os deparo, a princípio com alguma surpresa e quiçá traços de inquietude. Com o tempo, essa inconsueta presença se vai aos poucos integrando na paisagem, não como elemento estranho, mas feição própria do cenário citadino.
Em geral, não andam em bandos. Se não forem disturbados, não terão decerto conduta anti-social. Ao contrário de outras terras, são respeitosos das convenções locais. Já os vi, a postura talvez temerosa, aguardarem o sinal verde para atravessarem a movimentada rua.
Também diferem de seus congêneres estrangeiros pela relativa corpulência, pela boa apresentação, pela habilidade com que associam desenvoltura e discrição, e pela preferência em circunscrever a respectiva área de atuação.
Assim, se se poderá encontrá-los em cerimônias cívicas, parques públicos, na agorá e em outros terrenos históricos decerto palmilhados por seus distantes antepassados, tampouco estarão ausentes de bairros residenciais, hotéis de cinco estrelas e de estabelecimentos comerciais e bancários. Quanto a restaurantes, sobretudo aqueles turísticos, ali não aparecem tanto, quiçá por não se sentirem tão à vontade.
Permita o ilustre passageiro, cujo olhar paira displicente sobre os logradouros atenienses, que eu lhes apresente essas criaturas, que não têm o dom da fala, mas que sabem comunicar-se seja com transeuntes, seja com moradores ou profissionais. Sem dominar o grego – que, sem dúvida, não é língua fácil – e sem recorrer à mendicância, eles sabem garantir passadio e eventual abrigo na vizinhança.
Senão, vejamos. Em minhas andanças pelas ladeiras de Kolonaki, a Ipanema comercial dessas bandas, já me acostumei a contemplar vitrinas e lojas na companhia respeitosa de nédios vira-latas. Se as cores da pelugem hão de variar entre o pardo escuro e o negro, a maioria não nega a descendência policial, menos pelas maneiras, do que pelo porte.
Neles a coleira não é marca de submissão. Revela apenas que se trata de indivíduo vacinado, por obra e graça do poder municipal. A alimentação ficará a cargo dos moradores do quarteirão, concedida mais em troca de eventuais afinidades do que por serviços ocasionais de segurança.
Por vezes, preferem afastar-se para um banho de sol, que lhes apraz em especial durante as agruras do inverno mediterrâneo. Contudo, muita vez não desdenham tentativa de diálogo com um humano apressado. Levantam a cabeça, o ar inquisitivo, até mesmo em sentido contrário ao seu movimento corporal. Deixam no ar a indagação se, por acaso, a pessoa não desejaria deter-se um instante, quem sabe para trocar impressões.
Outro, que me pareceu mais carente, seguiu-me por longo trecho da calçada, àquela hora já esvaziada pelos draconianos horários comerciais aqui vigentes. Fê-lo, sou forçado a convir, com uma certa fineza, diria mesmo timidez. Não sei se para não importunar-me, ou para não forçar a companhia, guardando a cadência dos passos, alternava a respectiva posição, quer alguns metros à frente ou atrás. O desejo de uma relação menos episódica, ele o traía apenas pelos olhos compridos e modos deferentes.
Para que, por fim, se possa formar noção de quão integrado se acha este contingente da demografia ateniense – se não adotarmos acepção demasiado rígida desse termo – julgo oportuno mencionar-lhes a participação nas comemorações cívicas. A par de acompanharem, com passo estugado, os batalhões das diversas forças bélicas, os cães de Atenas não temem acercar-se do poder estatal e de seus magnos representantes.
Decerto imbuído desse espírito, um deles se aproximou, o ar entre difidente e resoluto, do posto reservado à mais alta expressão do Estado. Se não se atreveu a pisar-lhe o espaço atapetado, resolveu conferir com as alertas narinas o seu esquinado contorno, retirando-se em seguida, sob o olhar curioso dos dignitários presentes, sem nada mais acrescentar à cuidadosa investigação, que, por vezes, a espécie associa a comportamentos complementares.
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sábado, 14 de junho de 2008
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Um comentário:
Diógenes estaria orgulhoso dos cínicos (literalmente) seguidores atenienses. Parabéns pela iniciativa do blog e pela ótima estréia!
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