Ao saber do lançamento do livro “Aconteceu na Manchete”, organizado por José Esmeraldo Gonçalves e J.A. Barros, publicado pela editora Desiderata, e com muitos colaboradores, encimados por Carlos Heitor Cony, tratei de ir à Livraria da Travessa, para adquirir um volume. Moviam-me dois motivos, de que declinarei, de início, a curiosidade natural de informar-me sobre as experiências de tantos jornalistas e escritores no mundo da revista Manchete e da Rede Manchete de Televisão, sobre as quais se abateu o silêncio da falência determinada por sentença judicial de julho de 2000.
A leitura de suas 432 páginas não me decepcionou. Há muitos episódios que revivem as características deste microcosmo simbolizado pelos três edifícios da Praia do Russell, projetados por Oscar Niemeyer. Se hoje decerto as suas vidraças parece que se ensombreceram, elas, como todas as ruínas, reais ou virtuais, refletem, com o passar do tempo inimigo, a vida cortada, a glória e o prestígio de antes, e a decadência dos últimos anos que antecederam a uma morte anunciada e não tão súbita.
A Manchete - e o seu mundo - é construção de grande número de jornalistas, escritores, artistas, intelectuais, políticos, e também de funcionários de extratos mais modestos. No entanto, se há muitos construtores, o seu criador foi uma pessoa só, verdadeiro capitão de indústria, que, com suas múltiplas qualidades, idiossincrasias e eventuais defeitos, se tornou o símbolo vivo da empresa gráfica, jornalística, cultural, artística, e, ao cabo, televisiva.
Falo, como é óbvio, de Adolpho Bloch, que foi para mim mais do que um exemplo, e com quem tive o prazer de privar e praticar em diversas fases de minha vida. Reporto-me agora, portanto, como não escapará ao leitor atento, ao segundo motivo que me levou a comprar o “Aconteceu na Manchete”.
Conheci Adolpho ainda menino, sobrinho que sou de sua esposa Lucy Bloch. Recordo-me da vez em que ele me levou ao Pronto Socorro – eram outros tempos e o atendimento foi rápido – para que tivesse suturado corte na perna direita, decorrente de prosaico acidente doméstico.
Conheci depois a Gráfica da Frei Caneca, e a acolhedora casa da Cinco de Julho, moradia do casal Joseph Bloch. Nas visitas à Gráfica Bloch, fui espectador dos trabalhos de criação, nos idos de 1952, da revista Manchete. O mercado na época era dominado por “O Cruzeiro” e Adolpho, o mais jovem dos irmãos Bloch, já demonstrava a centelha do empreendedor que não teme enfrentar o dragão de turno.
O primeiro diretor de Manchete foi Henrique Pongetti. Adolpho trazia para a nova revista a sua experiência gráfica e por isso, semelha natural que nos primeiros tempos o semanário mais brilhasse pela qualidade gráfica. Nesse contexto, alguém, pensando-se espirituoso, a descreveu como um calendário sem folhinha.
A jornada da Manchete e de seu criador teria diversos diretores, até que a revista se firmasse e se tornasse real contendora de O Cruzeiro. Na segunda parte dos anos cinqüenta a Manchete cresceria e a admiração de Adolpho Bloch pelo Presidente Juscelino Kubitschek e a sua grande obra evoluiria para uma grande amizade. Em 1962, recordo-me da recepção no Iate Clube para os dez anos de Manchete, que contou, entre outros, com a presença do então Primeiro Ministro Tancredo Neves. Nos convidados presentes àquela comemoração, já avultava o quanto caminhara Adolpho Bloch, desde as primícias do lançamento de Manchete.
Foi por essa época que Adolpho adquiriu a casa de Teresópolis na Granja Comary. Para lá íamos passar o fim de semana na companhia de Lucy e Adolpho. Ao almoço de domingo na magnífica sala do casarão todo mobilado por Lucy – aí conheci a madeira nobre da Amazônia, o gonçalo-alves – acorriam convidados ilustres. Dentre muitos, relembro a figura de Paschoal Carlos Magno. Outra feita, o convidado de honra era um senhor de origem italiana, que tinha magnífica residência em bairro então afastado do Rio de Janeiro, e duas belas filhas. Por ser de índole austera, Adolpho foi convencido a não usar o seu linguajar habitual, pontilhado de palavrões. Achamos graça do alívio que ele sentiu quando se despediu o homenageado, alívio esse que Adolpho soube fazer acompanhar de alguns expletivos...
A chamada revolução de 31 de março de 1964 veio encontrar-me Segundo Secretário na Embaixada em Paris. Ali vinham amiúde Lucy e Adolpho e saíamos para almoçar nos bistrôs parisienses. Certa feita, fomos a restaurante famoso nas cercanias parisienses, na alegre presença do casal Adolpho Bloch. Do programa participou um conhecido ator brasileiro, que nos veio mostrar o ‘torpedo’ que lhe passara uma comensal de outra mesa.
Quando Juscelino e Dona Sara se instalaram em apartamento próximo ao Bois de Boulogne, tive a honra – descumprindo ordens – de acompanhar Adolpho e Lucy em visita ao casal Kubitschek. Não sei se foi desta feita – ou de outra – em que se resolveu tomar o chá no Jardin de l’Acclimatation. O Presidente Juscelino adquirira um modesto Simca, cor azul escuro, e como não sabia bem onde era, tive o prazer de servir de guia com o meu carro, que JK seguiu pelas alamedas do bosque.
Mais tarde, fui oficial de gabinete do Ministro José de Magalhães Pinto. Nesse tempo, a remuneração dos diplomatas no Brasil era bastante exígua. Por isso, não só aparecia no almoço do Russell, mas também fiz traduções para Manchete e colaborei na Enciclopédia Bloch. No almoço com Adolpho, ou sentado à mesa que ele transformava em gabinete de trabalho (Adolpho sempre se recusou a encerrar-se em sala fechada) conversava eu igualmente com Justino Martins, Murilo Melo Filho, Arnaldo Niskier, Carlos Heitor Cony e Zevi Ghivelder. Alguns dos colaboradores do livro sobre a Manchete assinalaram apropriadamente o clima informal que presidia a muitos dos trabalhos na redação da revista Manchete.
Como é sabido, o trabalho do tradutor não costuma ser bem estipendiado. Para reforçar o sustento de minha jovem família, já com dois filhos pequenos, muita vez tinha de trabalhar até desoras para completar a datilografia das implacáveis laudas das traduções (lembro-me de matéria sobre o espião Kim Philby). Por isso, não pude conter o meu espanto quando fui chamado a fazer uma legenda para foto da revista Manchete,e pelo ínfimo trabalho de costurar um texto de duas linhas, com os nomes e sobrenomes adequados, vim a receber mais do que recolhia nos meus serões de tradutor...
Encontrei-me com Adolpho e Lucy no enterro do Presidente Juscelino em Brasília. Sem qualquer apoio oficial, o povo se encarregou de homenagear JK na missa de corpo presente na Catedral, onde presenciei um dos mais comoventes espetáculos na sincera espontaneidade dos candangos, quando as flores desenhavam parábolas sobre a multidão concentrada no interior do templo para cairem sobre o esquife do criador de Brasília.
Não desejo delongar-me nesse itinerário em que pratiquei com o meu tio Adolpho. Quando, após quarenta anos de matrimônio, Adolpho e Lucy se separaram, embora não me tenha afastado de todo, compreende-se que as minhas idas ao Russell não foram tão freqüentes quanto antes, malgrado haja sempre mantido boas relações com Adolpho.
A esse propósito, a despeito de que o nome de Lucy haja sido mencionado mais de uma vez – nesse aspecto desejo cumprimentar a José Rodolpho Câmara -, a história da Manchete – e da própria TV Manchete, em que Lucy representou Bloch Editores na reunião decisiva com o Presidente João Figueiredo – careceria de ser complementada com o aporte trazido por Lucy Bloch à criação, desenvolvimento e consolidação desse grande fenômeno editorial que foi a Revista Manchete e tudo o mais que surgiu atrás dela.
Se não me engano, a última vez que vi Adolpho Bloch foi em uma recepção na Embaixada da União Soviética em Brasília. Estava ele já bastante alquebrado, e conversamos por uns minutos. Ao contemplá-lo com tristeza, eu presenciava o trabalho implacável do tempo a preparar-nos a despedida daquele dínamo, conhecido pela verve, pelo humor, pela tenacidade, pela coragem, e por dois outros raros dons, o que os espanhóis chamam don de gentes e o dom de criar uma grande empresa.
quinta-feira, 13 de novembro de 2008
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Um comentário:
Esta convivência tão próxima com o diretor da Manchete merece outros relatos. São, sem dúvida, vivências históricas.
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