São muitos os personagens que entram em cena nas calçadas cariocas. Freqüentando mais as de Ipanema me restringirei, com poucas exceções, àqueles com que me deparo nas ruas deste bairro. Como a fauna é variegada e a observação deva render-se à atomização do microcosmo, encareço a boa vontade do leitor para a relativa fragmentação que desta realidade há de decorrer.
A bicicleta.As calçadas da Visconde de Piraja são largas, mas tal não significa que sejam seguras. Dentre os riscos que enfrentam, os pedestres são forçados a lidar com uma presença estranha.
Pois de uns tempos para cá, a anomia – que nos afeta a nós brasileiros em alguns aspectos – se tem manifestado na invasão do espaço pedonal pelos ciclistas. Quando renovei a minha carteira de motorista, ao repassar no manual do Detran as informações necessárias para responder às trinta perguntas do teste de atualização, li atônito a assertiva de que os ciclistas estão igualmente sujeitos às leis do trânsito.
É este descompasso entre realidade e discurso que o cidadão carioca (e brasileiro) encontra na interação com o ciclista. Pessoalmente, se nada tenho contra esta atividade, prezo mais a minha incolumidade física. E no que concerne à frase mencionada acima, não me cabe duvidar da intenção do poder público de que os ciclistas estejam também sujeitos ao código de trânsito. No entanto, ou acreditam nos poderes mágicos das declarações oficiais, e nada fazem (o que, no capítulo, parece corresponder aproximadamente à realidade), ou tomem medidas legais e práticas para implementar este suposto desideratum.
Basta andar por nossas calçadas, de que os ciclistas se servem livremente, para verificar que estamos diante de mais um exemplo da inocuidade da referida lei, que parece estar entre as tantas que “não pegaram”, esse bizarro fenômeno sócio-político que atingiria determinadas disposições legais no Brasil.
Não contesto que existam ciclistas que respeitam as disposições do trânsito. Sem embargo, há muitos que usam as calçadas como pistas, em velocidades que desafiam não só a lei, senão ao mínimo respeito que se impõe ter pelos usuários desse espaço pedonal. E para não cansar o leitor não desfiarei exemplos de outras infrações, como não parar no sinal, não observar a mão das ruas, não se deter diante do pedestre que atravessa a faixa, etc.
Se o código de trânsito quer estender o seu controle ao ciclista – como deve, no interesse da maioria – a primeira medida seria reinstituir a plaqueta de identificação. Sem isso e sem agentes encarregados do controle, ficaremos no domínio dos pios – e ineficazes – propósitos.
Crianças e inválidos. Em geral, nas manhãs se vêem nas calçadas carrinhos de crianças e cadeiras de rodas de pessoas idosas com problemas de locomoção. Ambas dependem de outros para rodar nesse espaço. Circulam sobretudo por motivos de saúde, para aproveitar as benesses do sol matinal. Vemos aí extremos que decerto não se confundem, inda que se aproximem na utilização do ar livre e na dependência de auxiliares. Se é bom que assim seja – por mais que confranja o número crescente de idosos inválidos -, caberia uma reflexão incidental sobre a utilização que me parece excessiva de carrinhos para crianças entre três e cinco anos. Pode ser mais cômodo para a mãe, mas está no interesse do(a) menino(a) ser levado para todo lado por carrinhos e não pelas próprias pernas (que afinal carecem de exercício) ?
Os nossos melhores amigos. Aprecio muito cruzar nas ruas com a imensa variedade canina (os gatos semelham estar noutra dimensão), que costumam ser pacíficos e respeitosos do próximo (humano). Sob certos aspectos, nossos irmãos caninos podem ser até mais interessantes do que o homo sapiens sapiens. Enfurnados em apartamentos, os cães mais jovens já sabem que dispõem de pouco tempo para enfronhar-se da passagem dos demais elementos da espécie pelos arredores que acreditam devam ser marcados como seus respectivos domínios - assinale-se, por oportuno, que os cachorros mais velhos têm atitude digamos mais filosófica a respeito. Muita vez, no entanto, os cachorros mais novos são tolhidos nas suas aspirações, eis que os seus donos, empregadas e passeadores profissionais estão com pressa. Por isso, não concedem aos cães as pausas devidas em experiência olfativa, que pelo confinamento em apartamentos e pela impetuosidade da juventude eles fariam por merecer.
Por outro lado, a inventiva de algumas donas de cachorrinhos desafia os limites do previsível, quando não do bom-senso. Já vi uma que os leva a passear em um carrinho de bebê; outra que confeccionou toda uma vestimenta para o que parecia um parente de chihuahua (chapéu de marinheiro, abrigo dorsal, sapatinhos, inclusive polainas); e as muitas que pensam proteger-lhe as patas, com botinhas de meia.
Outro fenômeno que demandaria laudas e não um magro parágrafo é a simbiose entre o dono e o cão. Há exceções, porém desperta atenção a identidade comum entre o animal político e o animal canino. Dessa maneira, tanto em termos de porte, quanto de catadura, as parecenças chegam a ser comoventes.
Personagens especiais. As calçadas cariocas são às vezes palco de desfiles fantásticos. Percorre as ruas de Ipanema como se fossem passarelas uma antiga modelo, que, vestida de branco, e vivendo em outra realidade, desfila em meio às gentes, quiçá ouvindo os aplausos de platéias que lhe admiravam a graça e a beleza. Pode-se igualmente contemplar, em determinadas cercanias, a figura do bêbado da vizinhança, em que se alternam o bom humor, as amistosas inconveniências, e o sono pesado nos limiares de lojas que fecharam as portas.
Na crônica anterior, me reportava de início ao burburinho e ao atropelo das vias da Antigüidade Clássica. Lamentavelmente, o nosso conhecimento estará necessariamente limitado aos parcos trechos dos manuscritos que chegaram até nós. Não obstante, não se afigura improvável que certos personagens – os senhores, os vendedores ambulantes, os mendicantes, os ladrões – continuem presentes, em avatares não de todo diversos.
O que no entanto parece inegável é que as calçadas cariocas (e as ruas) se tornam ainda mais interessantes. Infelizmente, porém, este interessante carece de ser visualizado também no sentido dos chamados ‘tempos interessantes’ da conhecida maldição chinesa.
domingo, 27 de julho de 2008
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