sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Nota para o Prefeito Eduardo Paes

Bem sei que o Senhor tem muitas questões a resolver. Também não desconheço que não estou sozinho em não receber resposta sua para as minhas comunicações, nem tampouco qualquer sinal de que o assunto foi repassado para algum dentre os muitos auxiliares de Vossa Excelência.
Idêntica queixa no que concerne ao seu silêncio li em colunista dominical, em jornal de larga tiragem. Devo dizer-lhe a respeito, no entanto, que não tornaria a maçá-lo com o assunto, se não julgasse tratar-se de matéria de saúde pública.
Ontem passei de novo pela Praça General Osório, com o seu chafariz seco de Mestre Valentim, e o espelho d’água que o circunda.
Senhor Prefeito,
como a comunicação anterior foi reproduzida pelo blog oficial de Ipanema – o que agradeço aos seus responsáveis – gostaria de uma resposta sua. A dizer-lhe verdade, o que desejo – e creio falar em nome dos moradores do entorno e daquela vizinhança do bairro de Ipanema – é que se determinem providências para pôr cobro ao estado lastimável em que se acha o laguinho da praça. Águas paradas, o fundo recoberto de limo, e boiando na superfície toda a espécie de restos da incúria dos espaços entregues ao deus-dará.
Se existe caso de proceder a limpeza regular e a outras providências voltadas ao controle da dengue, o Senhor e a coorte de seus auxiliares tem este dever pela frente.
Que crédito se poderá dar à propaganda anti-dengue, com toda a lista de cuidados recomendados a proprietários e moradores, se a prefeitura não semelha dar nenhuma atenção à comezinha, mas pontual intervenção em frequentada praça municipal contra um múltiplo foco do Aedes Aegypti ?

A Soberania brasileira e Cesare Battisti

A continuada procrastinação do senhor Luiz Inácio Lula da Silva no que concerne à questão do asilo a ser concedido a Cesare Battisti não causa perplexidade.
Tal reação implicaria falta de compreensão, espanto, ou até mesmo confusão do governo brasileiro que ele ainda representa, neste seu derradeiro dia de mandato.
Infelizmente, os muitos meses que se arrastam desde a decisão do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu ao Presidente o pleno direito de decidir sobre a matéria, não se devem às usuais razões que as administrações invocam quando tardam em manifestar-se ex-officio.
Houve sobejo, em verdade demasiado tempo, para que o Presidente Lula batesse o martelo. Afinal, para quem semelha tão ávido de valer-se das prerrogativas do cargo de Primeiro Magistrado da República, provocaria em outros estranhável assombro essa inusitada, aturada tardança, se o real motivo não transpirasse e de forma pouco enaltecedora para tão festejada e adulada presidência.
Diferir esperadas e relevantes decisões pode ser recurso extremo em determinados assuntos, em que uma tomada de posição pode contribuir para acirrar os ânimos, sobretudo de facções internas, antecipando choques que o presidente poderia evitar, contornando pressões de grupos sinceros mas radicais. Foi o que fez Getúlio Vargas, nos albores do tenentismo, quando esses jovens chefes militares desejavam implantar medidas revanchistas que vão ao arrepio dos costumes nacionais.Naquele momento, a habilidade de Vargas faria cair no olvido os arroubos intempestivos.
Não é o que caracteriza a questão Cesare Battisti. Deu-se ao assunto em tela toda a atenção devida, passando pelo Ministério da Justiça e o Supremo, até cair de maduro no regaço do Palácio do Planalto.
Cesare Battisti foi preso em 2007, a pedido do governo da Itália. Estava no Rio, mas foi transferido para o presídio da Papuda, no Distrito Federal, onde até hoje permanece. Em janeiro de 2009, é concedido refúgio a Battisti. O italiano passa a ter o status de refugiado político, pelo voto do então Ministro da Justiça, Tarso Genro. Evita-se, por conseguinte, a sua extradição para a Itália. Ainda em janeiro de 2009, o Presidente Lula defende a posição de seu Ministro, qualificando a questão de “soberania nacional”. O Presidente da Itália, Giorgio Napolitano, expressa “amargura” pela decisão.Divulga, por outro lado, carta sua ao Presidente Lula, o que não é praxe em correspondência de chefes de Estado. Em novembro de 2009, o STF opta por anular o refúgio, em decisão contrastada. Considera que os crimes cometidos por Battisti foram comuns e não políticos. Determina, contudo, que a decisão quanto à extradição cabe ao Presidente Lula. Em dezembro de 2009, sob pressão italiana, o STF recua. Decide agora que Lula deve respeitar tratado entre Brasil e Itália, o qual estipula que o governo só pode manter Battisti aqui se ele sofrer “fundado temor de perseguição política”. Em dezembro de 2010, Lula recebe parecer da AGU recomendando a permanência no Brasil de Cesare Battisti.
Desde a concessão do refúgio a Battisti, a questão se arrasta. Desde novembro de 2009, com a sentença favorável do STF ao reconhecer a Lula o poder de decidir sobre a extradição ou não de Battisti, o nosso Presidente deixou dormir nas gavetas do Palácio a escolha presidencial. Para explicar o que na verdade era inexplicável se aduziram razões diplomáticas, com a consideração devida ao Primeiro Ministro Silvio Berlusconi. Por abstrusas regras inventadas adrede, não se poderia constranger Sua Excelência com decisões eventualmente contrárias ao pleito do governo italiano, que fossem anteriores ou imediatamente posteriores à visita do Cavaliere.
Tantas atenções e tão prolongada inação faziam lembrar atitudes de estados temerosos, diante dos arreganhos de uma potência mundial. Ora, não vivemos mais a diplomacia das canhoneiras nem os abusos desse tipo de imperialismo do século XIX. E nem o Brasil, com o seu tamanho e sua tradição, é país de diplomacia servil e timorata.
Agora, a indecisão de Luiz Inacio Lula da Silva – com que reputara empurrar a responsabilidade de uma tomada de posição – bate, não imprevista, mas com força à porta do gabinete presidencial em sua derradeira jornada de mandato.
Postergando indefinidamente a sua batida de martelo, Lula passou imagem de tibieza e até mesmo de fraqueza.
As longas indecisões costumam pesar fortemente, ao enfraquecer a própria posição, a par de açular os ânimos da parte adversária, que interpreta tanta protelação como frágil postura. Os irresolutos incitam a radicalização da contraparte, que não se peja de escalar as próprias ameaças, insuflada pela aparente fraqueza da decisão que se deseja tornar írrita.
Nesses últimos dias, depois de deixar vazar a sua tendência a não extraditar Cesare Battisti, duas coisas se sucedem. As reações desrespeitosas dos ministros italianos do Gabinete Berlusconi, em que pouco falta para taxar o Brasil de republiqueta, eis que aqui se deixa vagarem pelas ruas os assassinos, sem falar das rosnadas represálias. E as reuniões do Presidente Lula – a última com o presidente do STF, Cezare Pelusoem um frenesi de contatos alegadamente informativos, para uma matéria já bastante madura para tal tipo de providência.
Estranhamente, o governo de Lula, que tanta determinação mostrara em firmar acordo nuclear com o Presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad e o Primeiro Ministro turco, Recep Tayyip Erdogan, em manifesta oposição aos Estados Unidos, agora remancheia ad infinitum na tomada de uma decisão de soberania. Eis que Lula, nos últimos dias de seu governo, errou ao vazar a sua intenção quanto a Battisti. Isso foi interpretado como sondagem, de quem não está seguro da respectiva posição. A inação nos dias seguintes, composta com mais contatos, inclusive com órgão que já se manifestaram, só há de contribuir para aumentar a confusão quanto à decisão final, a que Lula, pela sua inesperada timidez, dá múltiplos motivos para a Itália e o seu governo entreverem a possibilidade de obter in extremis um recuo vergonhoso de Nosso Guia.
Esperamos estar errado nas nossas suposições. Lula, no entanto, por seu comportamento, delas constitui a causa principal. Lembre-se, Presidente, que o refúgio a Cesare Battisti é decisão digna de nosso Estado e de nossa Constituição, e que apenas corrobora o asilo que François Mitterrand concedera a Battisti, sob o obsequioso silêncio das autoridades italianas de então que, pelo visto, sabem a quem assombrar.

Fonte: Folha de São Paulo)

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

A Democracia na Rússia

A democracia, esta tenra plantinha de que nos fala Octavio Mangabeira[1], está sendo bastante maltratada na Federação Russa. Sua presença na terra dos czares e da revolução bolchevista tem sido sempre fugaz, em breves interregnos de luta contra o poder central. A Duma[2] constituíu no reinado de Nicolau II o símbolo desse combate, que se mostrou incapaz de contra-arrestar a autocracia imperial.
Após o curto parêntese da revolução de fevereiro de 1917, com a derrubada de Alexandre Kerenski em novembro pela revolução bolchevique, a liberdade só principiaria a entremostrar-se nesse gigantesco país com a glasnost e a perestroika de Mikhail Gorbatchev[3].
Com a consequente dissolução da União Soviética – dilacerada pelas forças das nacionalidades, de que a argúcia de Vladimir I. Lenin encarregara o então apparatchik Joseph Stalin de ser o comissário responsável – surgiu em 1991 a Federação Russa, sob a presidência de Boris Ieltsin[4].
Apesar de seu passado comunista, Ieltsin seria um democrata. Com coragem, se batera contra os conjurados do golpe de agosto de 1991, que logrou desmantelar. No entanto, a URSS de Gorbatchev se desmantelaria no dezembro seguinte.
Quando Boris Ieltsin renunciou de surpresa, já no final do segundo mandato, em 1999, legou uma democracia, decerto ainda não consolidada, mas com liberdades básicas respeitadas, como a de imprensa e a partidária. Quiçá o seu principal erro tenha residido na escolha de quem o substituiria na presidência.
Com efeito, no segundo mandato, Ieltsin designou a princípio Vladimir Putin como primeiro ministro e mais para o fim, o apadrinhou como seu sucessor. Por causa de sua abrupta renúncia, Putin o sucedeu, a princípio, em caráter interino. No seguinte ano de 2000, logrou ser eleito presidente.
Ieltsin apreciara os atributos de administrador de Putin. Ele o trouxera da K.G.B., o temido serviço secreto, em que o jovem Vladimir fizera carreira de 1975 a 1990. Tais antecedentes não prenunciariam pendores democráticos da parte do novo presidente.
Putin, cuja impassibilidade e frieza no olhar são lendárias, na sua tarefa de moldar o governo e a sociedade russa de forma mais congenial às próprias ideias, cuidou de fazê-lo de modo gradual.
Aos poucos tratou estabelecer o controle na imprensa e sobretudo nas redes televisivas. Também se empenhou em surda luta contra os grandes empresários da era pós-soviética, com o escopo precípuo de afastá-los da política. Nesse sentido, tornou-se vítima emblemática, há sete anos atrás, Mikhail B. Khodorkovsky. Por afrontar a autoridade de Putin,este fê-lo trancafiar na cadeia, onde até hoje se encontra, por especial gentileza da justiça russa. Khodorkovsky já foi condenado por um juiz, com respeito à nova suposta transgressão. A sentença, contudo, ainda não é conhecida, mas subsistem escassas dúvidas de que esse delito imputado ao magnata não se destine a estender-lhe a prisão para além de 2012, consoante o manifesto desejo do Primeiro Ministro Putin de não ter em liberdade o adversário Khodorkovsky ao ensejo da campanha e provável reeleição naquele ano como Presidente.
Guardadas as aparências democráticas, em estágio bem mais avançado do que o do caudilho Hugo Chávez, a mão de Putin se faz sentir com ubiqua presença em todos os órgãos do Estado, disso não excluídos o Judiciário, a Promotoria e a Polícia. Com maioria nas duas Casas do Parlamento, é preciso muito denodo e audácia para enfrentar Vladimir Putin.
A guerra contra os secessionistas da Tchetchênia, uma pequena república da Federação Russa, continua, inda que de modo larvar, através do recurso ao terrorismo de uma parte dos independentistas. Também as autoridades pro-russas nessa República podem incorrer no assassínio de jornalistas que porventura denunciem os seus atentados contra os direitos humanos. Nesse capítulo, a mártir principal é a jornalista Anna Politkovskaya, assassinada no hall do seu prédio de moradia, na noitinha de sete de outubro de 2006. Até hoje, as tentativas de que haja justiça no caso tem fracassado, seja por falsas indicações, seja pelo desrespeito sistemático ao princípio penal cui prodest [5]nas investigações policiais em torno dos muitos suspeitos quanto ao mando do delito.
Outro episódio da atualidade vem corroborar as apreensões quanto ao enfraquecimento da liberdade na Rússia. Realiza-se agora, igualmente outro julgamento em Moscou, que se relaciona com o assassinato de Natalya K.Estemirova, acontecido há dezesseis meses atrás. Não poucas semelhanças com as vicissitudes da suprareferida Anna Politkovskaya tem o caso de Estemirova.Também renomada defensora dos direitos humanos na república da Tchetchênia, perduram as suspeitas de que haja sido sacrificada pelos seus esforços em fazer respeitar tais direitos.
No banco dos réus, todavia, da justiça moscovita não se acha alguém suspeito de envolvimento no crime que vitimou Natalya Estemirova. Quem lá se encontra é um colega de Estemirova, presidente do Memorial, uma das principais organizações de direitos humanos na Rússia. Oleg P. Orlov está sendo acusado de difamação, por haver ousado apontar como mandante responsável pelo crime Ramzan A. Kadyrov, líder da Tchetchênia.
O processo penal que está sendo movido contra Orlov revela, de uma certa maneira, o que ocorre com quem porventura se atreva a acusar altos funcionários de responsabilidade de algum crime. A imputação se volta contra o denunciante, que corre o risco de, na eventualidade de o juiz julgá-lo culpado, ser condenado à pena de três anos de reclusão.
Infelizmente, não há nada de absurdo em tal prognóstico. A deformação do sistema penal russa é confirmada se intentar-se examinar a questão pelo prisma da vítima. Como sói acontecer, a morte de Estemirova provocou apenas investigação incompleta, sem que os agentes encarregados hajam indiciado quem quer que seja como implicado ou suspeito do assassínio.
Vladimir V. Putin continua, sem embargo, a gozar de altos percentuais de aprovação popular. Por vezes, o seu nível nas pesquisas pode sofrer flexões, como por ocasião dos recentes incêndios florestais, que destruiram muitas casas e ameaçaram diversas cidades, inclusive Moscou. A irritação popular se deve à malversação de fundos para o equipamento dos bombeiros florestais, assim como à manutenção precária de estradas vicinais, que possam servir para um eficaz combate às chamas.
Putin, entretanto, está atento e pronto para intervir, quando acaso distinga algum risco mais forte para abalar o apoio de que goza na opinião pública. Nessa mesma linha, o primeiro ministro se submete a longas sessões com eleitores, respondendo a todo gênero de pergunta. Em tais ocasiões, não deixa de transpirar o seu menoscabo por ‘liberais’. Nessa postura, que de resto não dissimula perante o povo russo, trai a sua formação pela K.G.B.
O homem forte de todas as Rússias tem outras características em que um paralelo pode ser feito com ditadores do passado. Putin deve malhar com pertinácia, eis que lhe apraz, em várias oportunidades, pavonear o seu tórax desnudo e sarado. Como é de baixa estatura, gosta assim de mostrar-se em tais espartanos trajes montado em algum puro sangue.
Falando de peitos nús, caberia perguntar se porventura Vladimir se inspirou em Benito Mussolini[6], que presidiu por mais de vinte anos o Estado Fascista na Itália. Antes de pender de cabeça para baixo na Praça Loreto, ao lado da amante Clara Petacci, o Duce sabia cuidar da própria popularidade – cuja extensão em filmes de época é pelo menos embaraçosa – ao armar jogadas publicitárias, que no gosto de então rendiam muitos aplausos. Uma dessas jogadas foi a chamada ‘battaglia del grano’, em que Mussolini compareceu de torso desnudo, como se fora mais um ajudante nesse ‘combate do trigo’, em que ele buscava demagogicamente inculcar na povoação que a autarquia na produção do trigo era possível, se todos, com o Duce, à frente, se prestassem a colaborar.
Putin, decerto, com a sua catadura séria, não se presta aos gestos teatrais de Mussolini. Mas no terreno em que se crê favorecido, não desmerece dos ganhos potenciais que a máscula exposição do cavaleiro, neste antigo símbolo de poder que oferecem os corcéis, venha a ensejar-lhe perante o povo russo, habituado aos soberanos e senhores da guerra.
Quando do término do segundo mandato, ao invés da tentação continuista – que implicava emenda constitucional - Vladimir Putin preferiu optar por eleger o seu primeiro ministro Dmitry Medvedev. A popularidade de Putin logrou elegê-lo em março de 2008, com 71% dos sufrágios, exibindo, portanto, potencialidade maior de transferência de votos do que a do próprio Lula.
Por um certo tempo, se especulou a propósito de eventual possível peripeteia , com a criatura Medvedev reivindicando a primazia do poder, com relação ao respectivo Primeiro Ministro, no caso Vladimir Putin. Malgrado certas especulações de maior afirmação de Medvedev, o transcurso do tempo tem evidenciado que, ou são vãs, ou fictícias, as aspirações do atual presidente vir a assumir o efetivo controle da situação na Federação Russa.
Nessas condições, duas conclusões se afiguram válidas. Em 2012, se mantido o cenário presente, Dmitry Medvedev cederá de bom grado a vez ao seu mentor Vladimir Putin.
E, no mais extenso país do planeta, a democracia, essa tenra plantinha, continuará a sofrer e a definhar.

( Fonte: International Herald Tribune )

[1] Político baiano (1886-1960), Ministro das Relações Exteriores na presidência de Washington Luís (1926-30), foi deputado federal, Governador do Estado e Senador.
[2] parlamento, em russo.
[3] Mikhail Gorbachev (1931), foi Secretário-Geral do PCUS (1985-1991), e anunciou o desaparecimento formal da URSS em dezembro de 1991.
[4] Antigo membro do PCUS, Ieltsin (1931-2007), foi o primeiro presidente da Federação, exercendo dois mandatos (1991-1999).
[5] latim, a quem aproveita.
[6] Benito Mussolini, ditador fascista (1883-1945)

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

A Desordem Fiscal

Depois de uma pausa, voltamos aos resultados fiscais do setor público. Se as crescentes liberalidades de 2009 não pressagiavam um ordenado balanço fiscal em 2010, mormente em ano de eleições – que, no Brasil, confunde a demagogia e a irresponsabilidade fiscal – o saldo do último ano da era Lula parece que será ainda pior de o que se anunciara.
A despeito das continuadas assertivas de que a meta plena do superavit fiscal primário ( receitas menos despesas, sem contar o pagamento de juros) seria alcançada, a escrita na parede veio mostrar a inanidade dessas róseas projeções.
Para fechar as contas em equilíbrio fiscal, sem saldos negativos, Guido Mantega e sua equipe, com Arno Agustin, secretário do Tesouro à frente, terão de recorrer a uma série de malabarismos fiscais. Como a boa ordem das contas governamentais não é criatura saída da cartola de prestidigitador, mas sim a regrada contabilidade de receitas e despesas, os artifícios fiscais de Mantega & Cia. podem enganar a uns tantos, mas não passam de construção artificiosa que não reflete a realidade das contas.
Com efeito, como não será possível atingir um superavit fiscal primário equivalente a 3,1% do PIB, em 2010, necessário para o pagamento dos juros da dívida pública, o governo Lula vem recorrendo a uma série de artifícios para tentar o equilíbrio nas contas.
Quais são esses artifícios ? O primeiro é o abatimento dos investimentos feitos no chamado Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Por um dispositivo legal, a Administração procura inventar uma abstrusa escapatória para a contabilidade fiscal. Essa política de avestruz – que não passa de grosseira maquiagem fiscal – é uma característica do atual plantel na Fazenda, plantel este que foi confirmado para o governo de Dilma Rousseff.
No baú do Secretário do Tesouro, Arno Agustin, a quem caberia o dúbio galardão de inventar todos esses supostos recursos fiscais, há também o instrumento da capitalização, de que às custas do Tesouro (e do contribuinte) se engordou o caixa do BNDES. Além da Petrobrás, participa agora do esquema dessa vila Potiomkin fiscal a Eletrobrás, que foi por fiat federal retirada da meta de superavit fiscal. Não que o aporte fosse demasiado (0,2 % da meta), mas a sua subtração demonstra que os senhores da Fazenda desejam cumprir a meta de qualquer jeito. Com a providencial retirada da Eletrobrás, a meta fiscal do setor público consolidado passa a 3,1% do PIB!
Computados todos esses malabarismos, até novembro inclusive o superavit fiscal acumulado é de R$ 64,6 bilhões para a União (Tesouro, Previdência e Banco Central). Para 2010 a meta é de R$ 76,3 bilhões. Arno Agustin continua otimista, eis que essa diferença seria coberta com tranquilidade pelo aumento na arrecadação no mês de dezembro.
Posto que o Governo federal – neste bolo responsável por 2,15% contra 0,95% do quinhão de Estados e municípios – acene com dificuldades ‘por parte de estados e municípios’, para André Saconato, da consultoria Tendências, 2010 foi um ano em que o governo conduziu mal a política fiscal e agora joga a responsabilidade para cima de estados e municípios.
Diante do exposto acima, a sua conclusão se prefigura a um tempo objetiva, e por outro lado inquietante:
“ A política fiscal (em 2010) teve resultado muito ruim, e não temos certeza sobre 2011. O ministro da Fazenda continuará o mesmo.[1]
O balanço do corrente ano é, na verdade, a consequência da incapacidade das autoridades fazendárias de controlar os desvarios de gastança do governo Lula para viabilizar a sua sucessão por Dilma Rousseff. Quanto a 2011, os prognósticos estão em aberto, se bem que o desenvolvimentismo de Dilma e permanência nas Finanças dos mesmos personagens não é de molde a proporcionar muito otimismo, para os que torcem por uma progressão fiscal ordenada e com a casa em ordem.

( Fonte: O Globo )
[1] Meu o itálico.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Projetos de Ano Novo

Defrontado com a certeza da coabitação[1] com o Partido Republicano, o Presidente Barack Obama faz planos para os próximos dois anos. É grande a importância desta tarefa, por tratar da eleição que decidirá se ele terá ou não o ambicionado segundo mandato.
Na história americana, uma sombra paira sobre os presidentes que somente logram eleger-se para os quatro anos do primeiro mandato. Se a sua trajetória não for cortada por destino cruel, como no caso de John F. Kennedy[2], a não-reeleição para o segundo mandato representa marca de uma presidência por assim dizer incompleta. A esse respeito, são exemplos recentes o democrata Jimmy Carter (1977-81) e o republicano George H.W.Bush (1989/1993).
Consoante se comenta, Obama teria o propósito de emular a dois predecessores seus que impediram a Carter e a Bush senior de alcançar o ambicionado segundo mandato. Os dois modelos seriam, v.g., o republicano Ronald Reagan (1981/1989) e o democrata Bill Clinton (1993/2001).
Obama conta prosseguir dentro do espírito de cooperação que prevaleceu no final da legislatura de 2009/10. O acordo entre o presidente e a liderança republicana possibilitou não só a prorrogação por mais dois anos da isenção tributária para os mais ricos – que fora instituída por Bush júnior – mas também a aprovação de auxílios para os mais necessitados.
Para aceitar a prorrogação para os ricos Obama teve de engolir a solene promessa de campanha de cancelar essa vantagem. A flexibilidade rendeu-lhe, no entanto, a concessão de benefícios para os mais pobres, que interessa ao próprio partido.
Tal atmosfera lhe valeu igualmente a aprovação do novo Acordo Start com a Rússia, que tinha sido assinado no primeiro semestre na presença dos presidentes Medvedev e Obama. Outra conquista dos democratas foi a derrubada da proibição para o ingresso de gays nas Forças Armadas.
Obama pretende manter esse espírito bipartidário para a legislatura que ora se inicia, com o domínio pelos republicanos da Câmara dos Representantes, e no Senado, com maioria democrata mais reduzida.
Para tanto, o 44º Presidente tenciona inspirar-se em Reagan e Bill Clinton. Esses dois mandatários também tiveram de enfrentar Legislativo sob o controle da oposição, após o seu segundo ano de mandato. Reagan, pela sua popularidade, tornou-se uma espécie de ícone, o que tendia a impedir uma excessiva agressividade do partido contrário, no caso os democratas. Pela jovialidade e simpatia, o conservador Ronald Reagan saberia costurar apoios no Congresso, que íam além das tendências respectivas de situação e oposição.
Por outro lado, Bill Clinton não contou com a simpatia do G.O.P. Muito ao contrário, a maioria republicana na Câmara, valendo-se de Ken Starr, um promotor especial de marcada hostilidade ao casal presidencial, tentou enredá-lo judicialmente. A popularidade de Clinton não impediu que tivesse o impeachment decretado pela Câmara, graças à maioria republicana. Seria, no entanto, a opinião favorável do eleitorado que lhe assegurou tanto a conquista da reeleição, quanto à não-confirmação do impeachment pelo Senado.
Em blog anterior, me referi a artigo da colunista Elizabeth Drew, quanto às peculiaridades de Barack Obama e da sua Casa Branca, que muito contribuíram para a queda de sua popularidade e consequente derrota na eleição intermediária de novembro de 2010.
Resta verificar se efetivamente Obama se tornará mais acessível e se há de divulgar de forma mais inteligível para o grande público o programa da sua Administração. Essa falta de comunicabilidade se nota em grandes iniciativas do governo, como a Lei da Reforma Sanitária. Os republicanos intentam revogar-lhe as principais disposições, e para tanto se baseiam em malentendidos e até mesmo inverdades.
O Presidente Barack Obama tentou no primeiro biênio, e por mais de uma vez, estabelecer espírito bipartidário em suas relações com os republicanos. Nesse período, muitos republicanos o engambelaram com acenos de possíveis votos em favor da reforma da saúde, para na hora da decisão o deixarem sózinho com os seus democratas.
Excetuado o punhado de projetos votados no fim da legislatura de 2009/10, nenhuma das principais realizações da Administração pôde contar com um único sufrágio republicano que fosse.
Por outro lado, se Obama, ao invés de Reagan, buscar imitar Bill Clinton, ele terá de mostrar qualidades que até agora permanecem ocultas. Com efeito, Clinton demonstrou firmeza ao não render-se às ameaças de Newt Gingrich, o Speaker republicano, eleito pela onda do Contrato com a América. Newt Gingrich, ao exagerar nas doses – inclusive procurando provocar o fechamento do governo estadunidense por via fiscal – ficou estigmatizado pela falta de um mínimo sentido nacional, o que só fez incrementar a popularidade de Clinton. Este também evidenciou muita agilidade e esperteza política, traços até o presente não muito visíveis em Obama, como presidente.
Quanto ao desejo de reinstituir atmosfera bipartidária, a que parece aferrar-se o mandatário democrata, cumpre ter presente que a meta principal do partido republicano, conforme expressa pelo seu líder da minoria no Senado, Mitch McConnell, é de que Obama seja presidente de um só mandato.
Por outro lado, se atentarmos para a estratégia no passado das maiorias republicanas – e o GOP terá o sisudo John Boehner (Rep-Ohio) como speaker na Câmara, além da presidência de todas as comissões – é de valer-se disso para dirigir intimações aos principais funcionários democratas da Casa Branca, com vistas a comparecerem para diversas investigações que a assessoria republicana saberá montar com a eficiência habitual. O claro desígnio será o de estorvar a Administração democrata de toda forma. Já nas audiências a que forem convocados perante as comissões respectivas da Câmara de Representantes, os deputados republicanos contarão com eventuais deslizes dos intimados democratas. Como se sabe, como todas as declarações dos ‘investigados’são feitas sob juramento, o potencial perjúrio constitui sempre uma arma poderosa para atazanar e incriminar publicamente o funcionário supostamente responsável.
Se prevalecer o clima acima descrito – e ele se afigura não só possível, senão provável – semelha bastante difícil que alguém possa fundar um programa de trabalho comum, entre dois partidos transformados em duas facções, uma engajada na destruição política da adversária, e a outra empenhada em resistir e sobreviver às múltiplas armadilhas judiciais.
Muito em breve, o futuro há de indicar como evoluirá o projeto bipartidário de Barack Obama. Se louvável cooperação conjunta, vista até agora apenas nas derradeiras semanas da passada legislatura, ou se tudo, em fim de contas, não passa de uma bela miragem.

[1] A coabitação é um termo usado na política francesa, quando o Presidente da República tem de conviver com um Primeiro Ministro da oposição. Os exemplos mais próximos são François Mitterrand com Jacques Chirac, e deste último, já no cargo de Presidente, com o primeiro-ministro socialista Lionel Jospin. Posto que o cenário seja diverso nos Estados Unidos, com o seu regime presidencialista, o domínio pelo partido opositor de pelo menos uma das Casas do Legislativo configura já a necessidade da convivência dos poderes.
[2] Assassinado durante o seu primeiro mandato, em 22 de novembro de 1963.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Dilma e seu Governo

No dia primeiro de janeiro, após ter levado o seu criador até o carro da partida, em que, despojado da faixa, se terá afinal transformado em ex-presidente, Dilma Rousseff subirá a rampa com o futuro à frente. Quem partiu, quer queira, quer não, será um ex-presidente. Não importa que talvez não deseje ser como tantos outros e no peito acalente anseios de poder.
Dilma, no entanto, sabe que a construção do porvir, se é obra caprichosa, muito dela há de depender, primeiro pela confiança que se sói outorgar aos principiantes, segundo pela consciência de que agora é dela a caneta. Se está cercada de olheiros, se a quase-presença do antecessor paira por toda a parte, ela tampouco desconhece que tem condições sobejas para administrar – o que seu augusto protetor não possuía – e que a política, por mais infiel e traiçoeira que se afigure, será sempre decorrência da boa gestão.
Se conseguir dominar o monstrengo das trinta e sete cabeças, a trajetória promete ser menos acidentada e poderá conduzi-la a um outro patamar, que Dilma terá o direito de considerar como próprio.
Esse ministério, que ainda não é o seu, pela inchação ou pela mediocridade, ela não há de lograr aceitá-lo, pelo mero fato, que como concepção e arranjo nada ou muito pouco tem a ver com seus propósitos.
A alternativa com que se defronta, na verdade é simples na sua falsa complexidade. Ou se anima a vê-lo como um todo, ou se dispõe a governar com um núcleo de gente capaz.
Sendo a primeira tarefa mais do que impossível, desarrazoada, sua escolha de trabalho e de construção recairá sobre uns poucos, que buscará moldar à sua própria imagem.
Quanto aos muitos, entre podres e maduros, ou cairão nas primeiras refregas, ou se quedarão, conformes à inútil, insinuante necessidade de não abrir demasiadas frentes aos mouros que sempre os haverá.
Todos conhecemos o temperamento da Presidente. Forte como é, muita vez será o bastante para que seja respeitado. O ânimo imperioso pode ser válido instrumento de mando, desde que Dilma não se esqueça de tê-lo sob controle, para ficar ao longe dos problemas inúteis e das conspiratas urdidas por afrontas e explosões desmedidas.
A pressa será sempre inimiga da perfeição. As longas caminhadas começam com um simples passo. Se a gratidão é virtude necessária, não lhe servem nem a timidez, nem a impetuosidade. O bom governo se enceta desde o primeiro dia, sem arroubos, nem rupturas, mas também com o toque pessoal, que com beneditina tenacidade se dispõe a empreender o que tantos milhões de brasileiros esperam.
Acerca-se a hora de virar a página e dar a palavra a quem de direito.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Colcha de Retalhos LXIV

Morte de Carlos Andrès Pérez

Faleceu neste sábado, em clínica de Miami, aos oitenta e oito anos, o antigo presidente da Venezuela Carlos Andrés Pérez. Do partido Ação Democrática, CAP – como era conhecido – foi presidente por dois quadriênios (em 1974-1978; e 1989-1993). Em seu primeiro mandato teve postura esquerdizante, com a nacionalização de empresas, e motivou suspeitas de corrupção. No segundo período, seguiu o modelo neo-liberal, tendo provocado o chamado Caracazo em 1991 (protesto popular contra o aumento de tarifas e preços, de que até hoje se desconhece o número exato de mortos na repressão deste movimento). Ainda em 1991, sofreria duas tentativas de golpe de estado, uma das quais liderada pelo então tenente-coronel Hugo Chávez Frías[1], que, em consequência, ficaria preso por dois anos.
Foi em função dos escândalos e das inúmeras acusações de corrupção, que Carlos Pérez seria o único presidente venezuelano a sofrer impeachment, já nos meses finais de seu mandato. Sucedido por Rafael Caldera, CAP[2] viria a catalisar no futuro a corrupção generalizada dos mandatários daquele país, a tal ponto que preferiu ao cabo auto-exilar-se. O regime democrático, iniciado por Rómulo Betancourt em 1959, com a derrubada da ditadura militar do coronel Pérez Jimenes, se caracterizaria pela estabilidade por cerca de quarenta anos. Por longo período, Venezuela e Colômbia foram as únicas democracias, cercadas por um mar de ditaduras militares, com a triste proeminência do Brasil com os seus generais presidentes.
Com o passar dos anos – e feita exceção de Betancourt e de Caldera, entre outros - a pecha da corrupção se associaria ao regime democrático. Tal muito facilitaria a popularidade e a vitória subsequente de Hugo Chávez em 1999.

Atentados contra embaixadas

Suscitou preocupação a explosão de bombas em duas embaixadas em Roma. Enviadas por pacotes pelo correio para as missões da Suiça e do Chile, a perplexidade tende a crescer diante da aparente falta de algum nexo – mesmo dentro da chamada lógica terrorista - na escolha desses dois países, ambos democráticos e sem maiores problemas sociais.
Os artefatos explosivos, posto que rudimentares, feriram gravemente um empregado da embaixada suiça. Embora não esteja em perigo de vida, as suas mãos sofreram lesões sérias.
No passado, os representantes do General Augusto Pinochet encontravam marcada dificuldade em alugar espaços para as respectivas chancelarias na Cidade Eterna, dado o histórico de atentados contra as suas missões.
Dentre os usuais suspeitos, o Ministro do Interior, Roberto Marroni, singularizou o movimento anarquista como o provável responsável. A propósito, é conhecida a ligação entre anarquistas italianos e gregos. No mês passado, engenhos explosivos pouco sofisticados foram remetidos, em novembro, para doze missões em Atenas e dois líderes estrangeiros. O julgamento dos suspeitos está previsto para iniciar-se em janeiro próximo.

Crise Coreana: Ameaça de uma ‘sagrada guerra nuclear’.

O Governo da República Democrática Popular da Coreia, através de seu Ministro das Forças Armadas, Kim Young-chun, declarou que ‘está plenamente preparado para lançar uma guerra sagrada em qualquer momento, fundada no respectivo deterrente nuclear’.
Contrastando com o silêncio anterior, a agência oficial norte-coreana veio agora responder às manobras militares realizadas pela Coreia do Sul, no seu território, inclusive na área fronteiriça.
Na quinta-feira, 23 de dezembro, o Presidente da Coreia do Sul, Lee Myung-bak, prometeu um rápido contra-ataque, se o seu país sofrer nova agressão.
A esse respeito, o Governador Bill Richardson, do Novo México, depois de cinco dias na Coreia do Norte, advertiu que continuados exercícios militares pelo Sul ameaçam acirrar a violência entre as duas Coreias.
Como se sabe, na Antiguidade Clássica, houve quatro guerras denominadas ‘sagradas[3] porque provocadas em torno das oferendas e tesouros existentes no santuário de Delfos, o mais importante na antiga Hélade. Além do conflito ora ameaçado pela Coreia do Norte tenha laços ainda mais tênues com o sacro, teria decerto efeitos incomparavelmente mais desastrosos para o mundo, sem qualquer similitude com a antiga guerra sagrada dos gregos.

( Fontes: CNN e International Herald Tribune )

[1] Sobre a periculosidade de Chávez, vide “Venezuela: Visões Brasileiras – IPRI, Brasília, 2003, em minha contribuição, pp. 127/131.
[2] Iniciais do Presidente, pelas quais era conhecido.
[3] A mais relevante foi a Terceira, começada em 357 a.C.

sábado, 25 de dezembro de 2010

Lula, um Balanço

Conquanto os últimos dias de governo não tenham a esperança e as promessas de um início de mandato, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva se despede do palácio em atmosfera que pouco tem a ver com o que arrosta a grande maioria de seus predecessores.
Não é apenas a circunstância de que, para o que der e vier, obteve completo êxito em seu projeto de fazer o próprio sucessor. Nunca tal expressão se há de afigurar mais veraz. Por iniciativa sua, sem que tivesse qualquer interesse de partido ou instituição, Lula criou a respectiva sucessora. Não ouviu partido, nem quem quer que fosse. De sua algibeira a retirou, sabendo da ingente tarefa que lhe defrontava.
Dilma Rousseff não tinha experiência política, nem jamais enfrentara eleição para qualquer cargo. A tarefa não o assustou, e já no ano precedente ao pleito, ela começou a crescer, para no ano decisivo galgar o primeiro lugar na escala da preferência, lugar este que nunca mais cederia.
Lula não poupou esforços, nem todo gênero de manobra, que lhe fortalecesse a candidata. O tropeço do primeiro turno terá sido uma provação a mais, que ele soube superar, com a tenacidade e a disposição ferrenha que tudo subordinava à conquista do ambicionado laurel.
Como um dos coronéis do seu Nordeste, a que tanto se tem assemelhado, seja pelas relações, seja por comportamento e métodos, a presença de Lula, no intervalo que medeia entre os comícios e a posse da sucessora, continuou a brilhar com uma força que não é a usual para os presidentes a atravessarem o respectivo ocaso.
Em quase tudo o ministério futuro se parece com o atual. No seu inchamento, nas diferenças entre os ministros – os da Casa, os com poder, os que tão só compõem o quadro, sem chance ou pretensão de despachar com a Presidente. Será também um gabinete de experiência, como o foi o primeiro de Vargas em seu último governo, e muitos não se animam a augurar-lhe vida longa. A sua intrínseca mediocridade repete a dos ministérios de Lula pós-mensalão. E não deve surpreender que assim seja, dada a sufocante influência do Presidente Lula na composição da equipe de Dilma.
Lula se terá inteirado do que disse Itamar, um digno antecessor seu, que também saíu popular do Planalto – posto que sem o exagero do atual – ao recordar das diferenças da planície e da falta do ‘moço da mala’.
Lula, o taumaturgo, quiçá acredite que poderá igualmente driblar tais contingências. O seu desconforto com a partida se afigura bastante evidente, a despeito da discrição da sucessora. Ainda se julga com títulos para dar puxões de orelha em ministros que tratam de matérias além primeiro de janeiro.
Tampouco deixa dúvidas a circunstância de que medita sobre o seu eventual retorno. A sua frase de não poder excluir tal hipótese, não deve tê-la como simples resmungo ou veleidade inconsequente.
Lula é um animal político que se enamorou da presidência. Os deuses podem ser volúveis, a sua sucessora é ainda uma caixa preta, mas Nosso Guia continua irrequieto, inconformado quiçá com uma separação definitiva.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O Esquecido Barril de Pólvora

A imagem é talvez antiquada, mas como nos recorda antigos sacrifícios, entre os quais grandes e solenes oferendas aos deuses, como as hecatombes[1], ela talvez atenda a duas características do fenômeno moderno: o seu caráter quase fortuito e as imprevisíveis consequências de acontecimentos em lugares periféricos e de aparente pouca importância objetiva.
A 28 de junho de 1914, o Arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do Império Austro-Húngaro, na companhia da esposa Sofia, realizava visita a Sarajevo, capital da província da Bósnia-Herzegovina. O descuido e a incompetência de os que organizaram o cortejo de sete carros – o do Arquiduque sem capota ou qualquer outra proteção – só é comparável ao amadorismo dos revolucionários que almejavam abater o que era para eles o símbolo do poder opressor.
O primeiro intento, com o arremesso de uma bomba, produziu estragos, mas não atingiu a viatura principal. Com a irritação do príncipe, a reunião no hospital foi inconclusiva. O próprio motorista de Francisco Ferdinando pensou que a ordem seria retirar-se da cidade, no que demonstrava mais bom senso do que os dignitários. Determinado o aparente equívoco, a viatura retornou ao local marcado pelo destino, onde se achava Gavrilo Principe, cujos dois tiros desencadeariam a chamada Grande Guerra. O primeiro atravessou a lataria e atingiu o abdomen da princesa Sofia. O segundo atingiu o pescoço do Arquiduque Francisco Ferdinando.
Grande simpatia e comiseração cercaram de início as vítimas do magnicídio. No entanto, a reação da Chancelaria austríaca cuidaria de dissipar tal reação natural e imediata. Foi apresentado ultimatum contra a Sérvia, considerada com o núcleo originário da conspiração. Belgrado acedeu a todas as condições impostas por Viena, com uma única exceção, a de que os funcionários austríacos não entrassem em território sérvio no curso de suas investigações.
Por tal motivo, e contando com o apoio de Berlim, Viena declarou guerra à pequena Sérvia em 28 de julho de 1914. Com isso se desencadeou o mecanismo infernal que a diplomacia das grandes potências europeias tinha estabelecido. Não me ocuparei dessa quase alegre entrada no conflito, no jogo das alianças e dos compromissos, incluindo ambiguidades cruéis e irresponsáveis, como se os líderes tratassem das inconsequentes e cavalheirescas guerras do século XVIII . Tal esquema de alianças embrionário e paralelo, algumas secretas que desautorizavam solenes e ostensivos compromissos, contrastava com o progresso econômico e a amplitude do comércio, em época marcada por amplo entendimento, de que a não-exigência de passaportes para as viagens internacionais de ricos e pobres bem representava a atmosfera de cordialidade imperante. Sem o saber, preparavam-se as raízes do desastre futuro, que submeteria a comunidade internacional a milhões de mortos, a grande e generalizado retrocesso no progresso sócio-econômico, e o que é pior, criando as condições malditas para que dali a vinte anos eclodisse outra tragédia, infinitamente superior em sofrimento, injustiça e morte do que a dita Grande Guerra.
O leitor há de perguntar-se por que estou remexendo nesse velho baú, desencavando ossos e farrapos de tempos olvidados.
Na atualidade, no extremo-oriente asiático, a península da Coreia, que antes da última guerra mundial congregara uma só nação, por circunstâncias do legado da conflagração e da decorrente guerra fria, está hoje dividida em dois Estados, a próspera e democrática República da Coreia, de que é capital Seul, e a República Democrática Popular da Coreia, cuja capital é Pyongyang.
Separa esses dois países a área desmilitarizada do paralelo 38, que é consequência do armistício que congelou a sangrenta guerra entre as duas partes de uma só nacionalidade. Ao norte, a ditadura comunista dos Kim, iniciada em 1948, e até hoje imperante, com a crescente presença do exército. E ao sul, a hoje florescente economia que contrasta com a miséria, o isolamento do norte, em que a fome cobra o seu dízimo cruel, agravado pela existência da casta militar e a falência do sistema produtivo.
A primeira guerra transcorreu no início do governo de Kim Il Sung. Sem tratado de paz, as hostilidades permanecem suspensas por um fio. A Coreia do Norte transformou-se em estado pária, mas logrou dominar a tecnologia nuclear e dispõe de mísseis de médio alcance.
Atualmente é presidida por Kim Jong-il, filho do precedente, e alterna tentativas de composição com assomos guerreiros. Talvez por considerações dinásticas, as atenções ora se dirigem para o filho caçula, Kim Jong Um, a quem o pai desejaria colocar no posto de mando da república.
Terá sido nesse contexto de afirmação filial, que Pyongyang escalou na sua reação a exercícios militares em ilha fronteiriça da Coreia do Sul. Como a artilharia da Coreia do Norte matou a dois militares sul-coreanos, o Presidente Lee Myung-bak julgou oportuno elevar o tom da resposta de Seul, tanto nas manobras, quanto nos exercícios civis.
Dado o natural sigilo que cerca a tais desenvolvimentos, se não se conhece o teor dos diálogos entre Barack Obama, protetor da Coreia do Sul, e de Hu Jintao, protetor da Coreia do Norte, não é difícil prever-lhes tanto a existência, quanto a recíproca preocupação em conter os ardores dos respectivos campos.
Talvez a tarefa mais árdua esteja com Hu Jintao, dado o temperamento de Kim Jong-il. A irresponsabilidade de quem paradoxalmente erige a própria fraqueza em força não semelha decerto fenômeno inédito. Se a história não é avara de tais exemplos, tampouco será inoportuno sublinhar que a primeira conflagração mundial foi desencadeada por tal inversão de poderes, com a estranha e tópica predominância dos fracos em momentos determinantes.
Será pensando em tais perigos, que me pergunto se não seria o caso de restringir as manobras e exercícios fronteiriços, a que ora se dedica com patriótico fervor a Coreia do Sul. Regimes mais sensatos e mais equilibrados do que o da República Democrática Popular da Coreia muita vez já entraram nesse jogo de mútua exacerbação militar, com consequências nem sempre das mais auspiciosas para a manutenção da paz.
Dada a circunstância de que Pyongyang, capital de país sem opinião pública e dominado por estrutura militarista, nunca evidenciou equilíbrio que a faça suportar, com equanimidade, as constantes manobras em suas fronteiras, é mais do que tempo de exercer um pouco de controle.
Se levantar lanças e escudos nunca foi presságio de paz, tampouco o será chuçar onça com a vara curta da temeridade. A Paz Mundial agradeceria.

[1] Nada a ver com um dos principais sacrifícios religiosos da Antiguidade, em que se abatiam cem bois. Nos tempos modernos, significa morticínio, carnificina, grande catástrofe.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Duas Notícias Importantes de Última Hora

Nos Estados Unidos: Aprovação do Tratado EUA-Rússia

A Administração Obama logrou obter do Senado a aprovação do novo Start[1].
O novo Tratado fora assinado em abril p.p., quando da reunião dos Presidentes Dmitri Medvedev, da Federação Russa, e Barack Obama. A concordância do Senado americano, ao final desta legislatura, representa inegável triunfo para a Administração democrata.
Terá sido determinante para a votação do Senado o sentir da opinião pública, que se manifestara a favor de forma bastante pronunciada ( pró: 73%; contra: 24%). A aprovação pela Câmara Alta se deveu à quebra do monolítico bloco oposicionista, propugnado pela liderança de Mitch McConnell e por expoentes direitistas, como a liderança ascendente de Jim DeMint (Carolina do Sul).
Com efeito, toda a bancada democrata votou pela aprovação, no que foi acompanhada por mais de dez republicanos. O quadro final aponta 71 a favor e 26 contra.
O Presidente Barack Obama saudou a aprovação, pelo sinal que transmite de que ‘Republicanos e Democratas estão juntos no que tange à segurança’. Para sinalizar, de resto, a relevância do assunto para o governo, o Vice-Presidente Joe Biden presidiu à sessão do Senado que culminou na aprovação do Acordo.
Contribuíu para agilizar a tramitação a introdução e aprovação de emenda, a que se associou o ex-candidato republicano John McCain, de que o novo Start não deve ser interpretado de modo a prejudicar os planos estadunidenses de defesa missilística.
Depois do entendimento bipartidário entre a Administração Obama e o Partido Republicano, em que foram acordadas diversas medidas de interesse dos democratas e do G.O.P. (entre elas a prorrogação das isenções de imposto de renda acertadas por George Bush para as faixas mais altas dos contribuintes), Obama tem logrado, nesse final de legislatura, a aprovação de vários projetos – como o da admissão dos gays nas Forças Armadas – da plataforma do Partido Democrata, que estavam engavetados em comissões do Congresso Norte-Americano.
Em termos de política externa e de retomada da cooperação estratégica entre Washington e Moscou, o novo tratado Start, uma vez ratificado pelos dois países, representa sem dúvida a medida mais relevante.

Na Argentina : Nova Condenação dos Militares.

Pelo tribunal de Córdoba, o ex-Presidente General Jorge Rafael Videla foi condenado e sentenciado a prisão perpétua, por violações cometidas contra os direitos humanos durante o seu governo ditatorial (1976-1981). Esse novo veredito reconfirma decisão de 1985, que o condenara a prisão perpétua, e que fora rescindida por um indulto concedido pelo Presidente Carlos Menem, em 1990.
Por sua vez, o General Reynaldo Benito Bignone foi sentenciado a 25 anos de prisão, por sequestro e tortura de 56 pessoas. Bignone fora o último ditador militar (de junho de 1982 até dezembro de 1983), antes da redemocratização iniciada por Raul Alfonsin.
Por fim, o General Luciano Benjamin Menendez, Comandante do 3º Exército, foi condenado também à prisão perpétua, por infrações graves contra os direitos humanos.
As decisões tomadas pela Justiça argentina são relevantes. Viabilizadas pelo Congresso da República – que invalidou os perdões e as anistias tomadas por iniciativa de Carlos Menem – sinalizam a prevalência do poder civil e a necessidade do respeito aos direitos humanos.
Constituem, por outro lado, uma indicação por nosso maior vizinho quanto à importância desse respeito, assim como da nulidade das anistias aos torturadores e demais transgressores dos direitos humanos. Evidenciam, outrossim, um marcado contraste com a timidez até hoje prevalente no Brasil, como, de resto, a última sentença do Supremo Tribunal Federal é a respeito embaraçosa confirmação ( Cf. o meu blog O Brasil e os Direitos Humanos, de 17 do corrente)

( Fonte: C.N.N. )

[1] New Start: Novo Tratado Estratégico de Redução de Armas (Nucleares)

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O Desrespeito ao Povo

O que se anuncia para a véspera do Natal é o resultado da desídia do Congresso, que até hoje não regulamentou o direito de greve nos serviços públicos. Há mais do que ironia na situação em que Câmara e Senado, depois de mais de vinte anos da promulgação da Constituição de cinco de outubro de 1988, deixaram de regulamentar uma série de disposições de grande interesse público, inseridas em nossa Carta Magna.
O Poder Legislativo, como se verificou na recentíssima despejada tramitação e aprovação do despropositado aumento que se autoconcedeu, empolgado por sua alienação corporativista, só atende com presteza aos respectivos interesses. As direções das duas Câmaras se sucedem, entrementes, sem jamais atentarem para o embaraçoso acúmulo de providências que, a despeito de determinadas pela Constituição, jazem desatendidas por uma gritante negligência a que os anos, nem a sucessão de mesas diretivas jamais terá lançado um olhar responsável, na consciência de um dever que para o Povo se afigura mais do que impostergável.
O Congresso brasileiro é a prova viva e constrangedora de que a remuneração, por si só, não implica em compromisso responsável, nem em mínima vontade política de pelo menos encetar o bom trabalho de atender às maiores urgências do sobrecarregado passivo de tantas legislaturas. Mais do que um embaraço, a circunstância de ser o Legislativo mais bem pago do planeta representa um acinte e um vexame para nossa laboriosa gente.
Como mais uma vez se expõe, inexiste qualquer relação entre o absurdo estipêndio – que decerto não se limita à remuneração, mas a um chorrilho de privilégios – e a qualidade do serviço prestado. Em termos de interesse público, as duas Câmaras se assinalam por confrangedora ausência, e o vácuo decorrente tem dado pretexto a invasões inadmissíveis dos outros dois Poderes.
Tampouco os escândalos – como se viu nos dois últimos na farra de vantagens dos senhores deputados e nos atos secretos do Senado que alimentam uma burocracia cevada em salarios abstrusos – semelham instrumentais para que a Nação se liberte desses falsos serviços que desvirtuam, na cumplicidade das Mesas diretoras – V. Sarney, aquele que, segundo Lula, não é um cidadão comum – o público serviço que a Sociedade espera de seus mandatários. Para tanto, infelizmente, a desmemória do Povo é substancial adjutório para que os escândalos sejam inconsequentes e ineficazes, para um Congresso ‘teflon’.
A crise aeronáutica que ora se prefigura é direto efeito desse estado de coisas.
Se o Congresso não atende a muitos de seus precípuos deveres e sequer legisla para o que dispõe a Constituição no que concerne à regulamentação do direito de greve em serviços de grande utilidade pública, mais cedo ou mais tarde tal desídia se fará sentir sobre o Povo soberano.
Em imitação irresponsável das greves selvagens no Velho Continente – acabamos de assistir a uma delas, a dos controladores de voo na Espanha, de que vai sair muito mal a privilegiada categoria – há sobejas indicações de que os aeroviários projetam realizar uma interrupção de suas atividades, na véspera do Natal.
O que isso representaria – se as lideranças sindicais levarem a própria alienação e estultícia a tal extremo de egoismo corporativo e de falta de qualquer sentido de respeito à sociedade em nossa maior festividade – prefiro não imaginar, na esperança de que, na undécima hora, o sindicato dos aeroviários demonstre maior sentido de responsabilidade de o que o congênere ibérico.
Por outro lado, que a causa imediata não obscureça a mediata, aquela que por sua negligente ausência determina o aparecimento de tais situações. Embora seja difícil conceber, no presente cenário, uma reação responsável das lideranças parlamentares e das aparelhadas agências reguladoras, nunca será demasiado apelar para a ação corretora de autoridades que até hoje jamais atentaram para o singelo dever de instrumentalizar as disposições constitucionais.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Dois Pesos e Duas Medidas

Recordam-se da entrega do menino Sean ao pai, o americano David Goldman? Em jatinho alugado por empresa de comunicações estadunidense, Sean retornou aos Estados Unidos, na companhia paterna, nas vésperas do Natal do ano passado.
A despeito dos esforços da família de Bruna, a mãe falecida na mesa de parto, em 2008, a justiça brasileira mostrou grande desenvoltura em atender aos reclamos do pai, que tinha o apoio de Hillary Clinton, Secretária de Estado, e também do Legislativo, através de Senadores de New Jersey, estado da naturalidade do progenitor.
Para a pronta criação de condições da transferência da guarda da avó materna Silvana Bianchi, foi comovente a ajuda prestada pelo Ministro Gilmar Mendes, então Presidente do Supremo. Revogou a decisão de outro Ministro do Supremo, Marco Aurélio, e restabeleceu sentença do Superior Tribunal de Justiça, que determinara a devolução de Sean ao pai.
As promessas de David Goldman, que reside em New Jersey, de garantir acesso da avó e do padrasto ao menino Sean – que convivera por cinco anos com a família brasileira – se evaporaram, tão logo logrou transportar o filho para solo americano.
O empenho da Justiça brasileira em atender à reivindicação de David Goldman, reivindicação esta fundada em Convenção da Haia, seria merecedora de maiores encômios se tivesse garantido, junto aos juízes estadunidenses, que fosse igualmente respeitado o direito da família materna de manter o natural e amiudado contato, que se esperaria de parentes afeiçoados – e que haviam bem cuidado – do filho da brasileira Bruna.
Infelizmente, nem uma coisa, nem outra, está ocorrendo. Os contatos entre a avó Silvana Bianchi e o menino são difíceis e esporádicos. Desde 22 de junho p.p. Silvana não tem notícias do neto, com quem falara, desde a súbita viagem do Natal de 2009, por quatro vezes.
Diante do caráter contencioso da questão – que a atitude do pai decerto não tem ajudado a superar – na Justiça brasileira tramitam recursos para que seja revista a sentença do Tribunal Regional Federal, que determinara o imediato regresso de Sean aos Estados Unidos, onde nasceu.
Pelo esforço e meios da família brasileira, fora interposto recurso extraordinário ao Supremo, que o Ministro Marco Aurélio acolhera, em caráter de liminar. Nessa ocasião, interveio o seu colega, Ministro Gilmar Mendes, então presidente do STF, que se reputou autorizado a revogar a decisão do companheiro de Corte, determinando o pronto cumprimento da sentença do TRF, sem aditar qualquer condição precisa que velasse pelo atendimento dos necessários futuros contatos entre a família brasileira e Sean Goldman.
Tampouco é reservada a presteza, antes concedida ao pai David, à avó materna nos seus intentos de ver assegurada a visita e o contato humano com o neto, que descobriu arrastado de casa, ‘como um pacote, no dia de Natal’. Com efeito a Justiça americana – uma corte de New Jersey – não tem dado resposta ao pedido, interposto através de seus advogados, da avó materna e do padrasto de visitar o neto Sean.
Por enquanto, valem as estipulações do pai em matéria de comunicação telefônica: ela deve falar em inglês com o neto (idioma que não domina), não pode referir-se ao Brasil, nem a respeito da irmã, Chiara. A exemplo do último telefonema, feito pelo neto, em a conversa sem espontaneidade, na qual parecia, segundo a avó, ter alguém a seu lado, “tomando conta do que falava”.
A par disso, o pai David mudou o telefone de casa e não atende ao celular. Consoante a avó Silvana, se tudo estivesse bem, ele nos deixaria ver (o menino).
Há outras indicações da mudança da atitude do pai – que antes, quando procurava reaver a guarda do filho, estava sempre disponível para a mídia.
A Folha de S. Paulo tem envidado esforços para manter contato por e-mail e telefone com David Goldman e sua advogada, desde o início de novembro. Até hoje, em vão. Nenhuma resposta.
A reportagem da Folha teve outra mostra da boa vontade das autoridades americanas. Procurou chegar até a residência de David Goldman, em Tinton Falls, no estado de New Jersey. Ninguém atendeu ao chamado no local, posto que houvesse caminhonete estacionada em frente.
Voltando desse endereço, a reportagem foi parada por policiais, que disseram que David não quer “ser incomodado” pela imprensa. Aditaram, a propósito, que, se a reportagem retornasse ao local, seria presa por invasão de propriedade. O resguardo da privacidade de Sean careceria de transformar a plácida vizinhança em arremedo de estado policial ?
À desenvoltura de antes, conforme evidenciada por altos representantes da Justiça brasileira, na concessão de decisões, sem qualquer condicionamento efetivo, à Parte americana, não se presencia, ó surpresa, equivalente boa vontade de Parte das autoridades estadunidenses.
Entrementes, o pai, David Goldman, se dedica, assiduamente, a escrever o seu relato “O Amor de um Pai”, a ser publicado proximamente pela editora Viking.
Continuaremos, dessarte, a sermos municiados com a visão do pai, ora na assegurada guarda do filho Sean.
Quanto a outros dados, quiçá mais informativos, só nos resta especular se por acaso o Wikileaks, em uma eventual batelada futura, há de reservar-nos novas surpresas.
Quem sabe ?

( Fonte: Folha de S. Paulo )

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Do Poder e seus limites

Muito ainda há de escrever-se sobre o recente aumento omnibus decidido e votado no mesmo dia pelas duas Casas do Congresso. Antes de suscitar enganosas expectativas, é bom frisar que o omnibus supra-referido se reporta unicamente às hiper-estruturas do mando neste país. Com exceção dos eventuais beneficiados pelo chamado efeito cascata, a prática a que atônitos assistimos só interessa aos grandes Senhores da República, vale dizer, Presidente e Vice-Presidente da República, Ministros de Estado, Senadores, Deputados e Ministros do Supremo Tribunal Federal.
Longe está o tempo em que, a par dos deveres e responsabilidades dos altos cargos, dentre os seus direitos e prerrogativas sobressaía o do exemplo a ser prestado no respectivo exercício aos demais cidadãos.
Há cenas e espetáculos que carecem de mais vagar para que os possamos captar e entender em tudo o que significam. Quanto mais se medite sobre o deplorável comportamento de Suas Excelências, mais teremos motivo de sentir quão afastados eles se acham do Povo brasileiro.
Que insano corporativismo é este que se arrogam os mandatários da Nação. Com o menosprezo de os que se crêem poderosos eles dispõem, arrogantes e insensíveis, das formalidades e exigências que formam o tecido da existência de todos os demais brasileiros que da planície e de sua vida morigerada os elegeram.
Na distância do Planalto Central, nos palácios magníficos do traço de Oscar Niemeyer, e nos grandes espaços marcados por Lúcio Costa, eles se tomam por uma corte, em que o real privilégio lhes torna tudo possível, inclusive a despejada e despudorada auto-concessão de vantagens que como o ouro dos antigos regimes cai sobre os seus ombros e vai célere cavando largo fosso que os separa da perplexa sociedade civil. Inebriados pelo poder e suas tão fáceis benesses, os representantes do Povo mais que dele se apartem, na verdade na própria alucinação o ignoram, como se, cumprido o pontual dever cívico, não mais se reconheçam do autêntico Soberano as criaturas que sempre serão.
Quando falta o senso da realidade – e que maior prova disso nos deram os senhores congressistas nessa alegre festança com o dinheiro do contribuinte – tudo se pode esperar em matéria de desarrazoado. Dessarte, a falta de proporção com a realidade brasileira em tais inchadas, escandalosas remuneraçoes dá as mãos à equalização de o que deve ser específico.
Que Frankenstein é este onde ministros demissíveis ad nutum ostentam o mesmo salário que o Primeiro Mandatário da Nação ? Em que Presidente, Senador e Deputado percebam o mesmo salário, como se os quinhentos e tantos deputados, os oitenta e poucos senadores tivessem atribuições na mesma altura do Primeiro Magistrado ? Isto sem falar dos Ministros do Supremo, que fornecem o generoso cabide onde os demais se dependuram.
O teatro da semana passada – encenado na quarta-feira, único dia de presença assegurada de Suas Excelências na Capital Federal – dói ainda mais, na sua lembrança e repensamento, aos nos darmos conta de que nos largos recintos do poder não ecoou uma só palavra, um só protesto, que, por um instante, quebrasse a ilusória atmosfera de um regime de privilégio.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Colcha de Retalhos LXIII

Obama, presidente de um só mandato ?

Elizabeth Drew, experiente e respeitada comentarista política, escreve sobre Obama e Washington oportuno e interessnte artigo no número de Natal de The New York Review.
Sob o título Na Amarga Nova Washington[1], a propósito do significado das eleições intermediárias de novembro último, Drew se reporta sobretudo ao comportamento do Presidente Barack Obama e o que possa pressagiar.
A derrota dos democratas nessas eleições foi bastante grande. Assim, ela varreu todos os ganhos dos pleitos de 2006 e 2008 (a maior reviravolta em 70 anos). Tampouco são animadoras as perspectivas de pronta recuperação da maioria na Câmara de Representantes, em função dos ganhos republicanos em mais de uma dezena de assembleias estaduais, o que se refletirá em muitos distritos eleitorais redesenhados em favor dos candidatos do G.O.P.
Não obstante, nos três exemplos de presidentes em seu primeiro mandato que perderam a maioria em pelo menos uma Casa do Congresso (Truman (D) em 1948, Reagan (R) em 1982, e Clinton (D) em 1994), o nível de aprovação de Obama (45%) é mais alto do que os demais, ao cumprir os seus dois primeiros anos de mandato. Não deixa de ter relevância o fato de que tanto Reagan, quanto Clinton superariam esse obstáculo, logrando a sua reeleição.[2]
A contraposição entre democratas e republicanos se acirrou muito nos últimos anos, mas a reconquista da Casa Branca é sempre objetivo prioritário dos dois grandes partidos estadunidenses. No entanto, a ênfase do líder da minoria no Senado Mitch McConnell afigura-se bastante emblemática de o que espera o 44º Presidente dos Estados Unidos: “De todas a coisa mais importante que queremos alcançar é que o Presidente Obama seja presidente por um único mandato.”
Por isso, os republicanos terão aprendido a lição da vitória de Newt Gingrich e o seu Contrato com a América. Não mais haverá exageros – como a tentativa de fechar o governo em 1995. O escopo de vencer nos comícios de 2012 não os fará esquecer os erros cometidos contra Bill Clinton.
No entendimento de Drew a atitude do Presidente e da Casa Branca pode ser tão determinante na eleição presidencial de 2012, quanto o foi no pleito de 2010.
Obama tem um alto conceito a respeito de si mesmo, o que não é, em principio, um dado negativo. Contudo, ele tende a fechar-se e a não se empenhar em traduzir para o povo americano os principais objetivos de sua presidência. Tal falta de comunicação também se assinalou na circunstância de que teve de implementar providências derivadas de seu antecessor George Bush. O fato de não registrar-lhes a origem o levaria a ser culpabilizado pela opinião pública por situações que não eram de sua responsabilidade.
Outra característica da Casa Branca de Obama é a relativa juventude de seus principais assessores, e de sua consequente falta de maior experiência política. O próprio Obama teria demonstrado que não capta uma das principais missões do Presidente, que é a de liderar o povo americano. Para E. Drew, Barack Obama e a sua equipe julga que o relevante seja fazer aprovar leis importantes.
O único membro da Administração com grande vivência política – o Vice Joe Biden – não teve muita influência no primeiro biênio. Há indicações de que o tropeço de 2012 tenha levado Obama a decidir ouvi-lo mais no futuro.
Talvez um dos grandes erros de Barack Obama haja sido pensar que o dia-a-dia da Administração era suscetível de ser conduzido como o foi a exitosa campanha de 2008. A sua eleição se baseou na dupla promessa de realizar a mudança (change) em Washington e fazer aprovar grandes reformas. Para John Podesta, que chefiou a equipe de transição de Obama (e que fora chefe de gabinete de Clinton), resultou que não logrou emplacar as duas.
A presente Administração não deveria esquecer que a época atual não é exatamente uma que veja com naturalidade ostentação e extravagâncias. Nesse sentido, as inúmeras férias do casal e, em particular, a viagem de Michelle Obama para a Espanha não tendem a ser bem recebidas nesses tempos difíceis.
Há muitos outros aspectos citados. Sem embargo, eles são decorrência da personalidade do Presidente e do círculos de assessores com que se sente mais à vontade.
Se os dados não estão lançados e tudo ainda seria possível, semelha oportuno ter presente que aí se acha o grande enigma. Terá Barack Obama condições de repensar a sua própria atitude e a respectiva maneira de lidar com a realidade ?

O Escândalo dos Salários dos Congressistas.

Já me ocupei do tema no blog de 16 de dezembro corrente – Terá Jeito Esse País? - mas creio que a reportagem da Folha sublinha aspectos tão oportunos, quanto vergonhosos. Em um Congresso que trabalha dois dias e meio por semana, com longas e generosas férias e recessos, não pode senão revoltar que os nossos parlamentares sejam os mais bem remunerados do planeta (com a concorrência de outro país emergente, o México). Deputados e Senadores brasileiros têm uma relação entre o respectivo salário e a renda média da população de 19,5, enquanto nos Estados Unidos é de 3,7, na Argentina 4,4 e na União Europeia 3,3 (na Alemanha é 3,0 e no Japão 4,4). Até mesmo a Itália de Berlusconi só chega a 5,5 !
Tudo isso espelha desgoverno e desrespeito à população, de que os escândalos no Senado e na Câmara constituem outra vertente.

Sequela na Trajetória de Silvio Berlusconi


O resultado nas votações da Moção de Desconfiança contra o Gabinete Berlusconi tanto no Senado, quanto na Câmara, se saldou com apertadas maiorias em favor do atual Primeiro Ministro. Só o futuro dirá o que terá sido empreendido para evitar a queda do ministério. Os motivos dessa salvação in extremis – e na Câmara com apenas um voto de vantagem para o atribulado Berlusconi – resultarão mais de eventuais investigações do que da imprecisa atribuição ao temor de uma crise no atual contexto econômico da União Europeia.
São desenvolvimentos futuros. Não obstante, a circunstância de dispor de apenas um voto de maioria na Câmara dos Deputados já constitui por si só forte indicação de situação de virtual ingovernabilidade.
Nesse cenário pouco favorável a Berlusconi – a despeito das aparências – pende ainda, como gigantesca espada de Dâmocles, a sentença da Corte Constitucional sobre a legalidade da leizinha que de novo concede ao Primeiro Ministro imunidade quanto a processos nos tribunais. Se o desfecho for desfavorável ao Cavaliere, teremos talvez um golpe mais forte contra a sua fortuna política que os vibrados pelas recentes votações em Montecitorio (Câmara) e Palazzo Madama (Senado).

O Fardo de Ser um Madoff

Mark David Madoff, o filho mais velho do falsário Bernard L. Madoff, lutou até o fim contra a pecha de inevitável e infamante associação com o escândalo do pai e seu esquema Ponzi. Era o editor de Carta Circular denominada Sonar Report (que tratava de propriedades imobiliárias). Na privacidade do apartamento de Manhattan, na manhã do dia onze antecipou o seu encontro com a morte, enforcando-se.
Além da enorme pressão sentida nos últimos dois anos, com a descoberta, prisão e condenação do pai, Mark enfrentava desafios mais sutis, porém não menos angustiantes, através das desconfianças de conhecidos, na sárcina do sobrenome, e, mais recentemente, nos novos processos movidos pelo encarregado das questões relativas à fraude de Madoff, um dos quais dirigido contra os seus filhos.
As acusações e potenciais implicações de ulteriores responsabilidades contra a massa de credores terão sido a gota d’água para entornar o próprio copo, já alimentado profusamente pela sua grande raiva contra o que pai fizera não só no que concerne aos clientes do hedge fund, mas também no que tange aos respectivos familiares.
Mark D. Madoff tinha quarenta e seis anos de idade.

As Perseguições contra os Cristãos no Iraque

Os cristãos caldeus são a prova da extensão da fé de Cristo e das igrejas relacionadas com a Sé Apostólica. O que não sofriam nos tempos de Sadam Hussein – em que um deles chegou a ser ministro das relações exteriores[3] - agora os força às incertezas da fuga e do exílio. Estranha campanha de violência sob encomenda (targeted violence) leva a minoria cristã a transferir-se para o norte do Iraque – na região curda – ou mesmo para o exterior.
O êxodo se segue ao cerco em 31 de outubro de uma igreja em Bagdá. Nessa ocasião, morreram 51 fiéis e dois sacerdotes. Ulteriormente, houve uma série de explosões e de assassínios, em que o motivo do crime se cingia unicamente à fé da vítima. Determinou a fuga sensação de crescente insegurança, dada a incapacidade das forças da ordem em proteger os cristãos, ou, o que é mais grave, a impressão de que não desejem prestar tal serviço aos caldeus.
Pelo visto, os apelos do Primeiro Ministro Nuri Kamal al-Maliki, em um país de grande maioria islâmica (e dividido entre as comunidades xiita e sunita), em favor da tolerância religiosa cairam em ouvidos moucos, inclusive os dos responsáveis pela ordem dentro da sociedade.
A intolerância aumentou muito desde a infausta invasão do Iraque, por ordem de Bush e Blair. Ela não se restringe aos cristãos caldeus, atingindo as comunidades xiita e sunita, com diversas matanças.
No entanto, a diferença entre o discurso das autoridades e a prática, é, em última análise, o que causa a resolução dos cristãos caldeus em buscarem asilo. Nas palavras do Reverendo Gabriele Tooma, o Abade do Mosteiro da Virgem Maria, pertencente à Igreja Católica Caldeia em Qosh, que deu guarida a 25 famílias: “É forte a sua fé em Deus. Foi a fé no governo que enfraqueceu.”

( Fontes: New York Review, International Herald Tribune e Folha de S. Paulo )

[1] The New York Review of Books, December 23,2010, In the Bitter New Washington.
[2] Truman não se candidatou à reeleição.
[3] Tarik Aziz, recentemente condenado à morte pelo presente regime xiita no Iraque.

sábado, 18 de dezembro de 2010

O Caudilho Hugo Chávez

A última manobra do coronel Hugo Chávez se insere em longa cadeia de embustes e agressões ao regime democrático.
Dados os seus pendores autoritários, o regime encimado por Hugo Chávez Frias cada vez mais se afasta da democracia.
Traço característico desse governo é o desrespeito à vontade da maioria.Quando perde nas urnas, é seu costume arraigado seja contornar, seja contradizer através dos instrumentos que manipula a bel prazer.
Como tem o controle do Judiciário, não teme que as suas ilegalidades e eventuais inconstitucionalidades venham a ser desfeitas, como sói ocorrer em democracias autênticas, através da sentença das cortes e tribunais.
Segundo o estampo das ditas democracias adjetivadas – que Chávez tanto aprecia -, na prática há uma só vontade, que se sobrepõe a tudo e a todos. Lukashenko, da Bielorrússia, Putin, da Federação Russa, Ahmadinejad, do Irã, Kaddafi da Líbia, e Mugabe, do Zimbabue são, entre outros, seus diletos modelos e comparsas. Sem falar, é claro, do maior de todos,o eterno Fidel Castro, a quem o protoditador dispensa o tratamento de ícone.
A última do Chávez, se não inova na essência, apresenta algumas variações na práxis.
Se Sua Excelência me permite, nunca dantes naquele país se presenciara tão descarado desacato à vontade do Povo. Ante a suposta afronta de não alcançar na assembleia a maioria que tudo permite – consoante os ditames do chavismo – os servidores do caudilho, com a pressurosa ajuda de Cilia Flores, presidente do órgão legislativo, trataram de evitar-lhe o incômodo de não ter todos os poderes, por causa de importuna presença da oposição, arrancada da última eleição, malgrado todos os truques e coações de que dispõem regimes como os manipulados pelo coronel e seus discípulos.
Dentro da ótica dessa ordem unida, em que só há espaço para o querer del Señor Presidente, os deputados chavistas não recuaram defronte de qualquer empecilho para conferir ao próprio amo o poder de legislar por decreto, pelo prazo de dezoito meses.
Eles não se detiveram nem pela decência, nem por simulacro de prática constitucional .Como assembleia com dias contados de mandato se pode substituir ao novo colegiado eleito pelo Povo ?
Que democracia é esta em que o recurso ao exercício da ditadura – de que outra modo definir a capacidade de se substituir ao órgão legislativo e governar por decreto durante ano e meio – se afigura não só legal mas praticável ?
Somente um organismo como a OEA e a sua Carta Democrática pode conviver com tal acinte. Acorrendo ao providencial estalo de Cília Flores, o caudilho o justifica pela necessidade de ‘responder à crise provocada pelas fortes chuvas’. Não vale nem a pena dar-se ao trabalho de contestar essa lógica demencial.
Desde muito que a Venezuela não é mais uma democracia. Quanto tempo ainda para que reconheçam tal verdade e se assumam as consequências? Afinal, que Estado terá a coragem de gritar que o rei está nu ?

( Fontes: Folha de S. Paulo e O Globo )

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

O Brasil e os Direitos Humanos

O assunto é de ontem – que, de resto, parece ser a visão dos senhores ministros do Supremo – mas, dada a sua incômoda para alguns atualidade, ele continua a merecer toda a atenção.
Como seria previsível, a Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH-OEA) condenou o Brasil em relação às violações de direitos humanos para com as vítimas da guerrilha do Araguaia.
O resultado era mais do que esperado. Após haver assinado e ratificado os atos internacionais competentes, no que concerne à Corte de San José – cuja jurisdição internacional reconhece desde 1998 – é pelo menos estranhável deparar com as contorsões no discurso de alguns ministros do Supremo.
Em decisão que decerto não se insere dentre as dignas de encômios e particulares referências, o Supremo julgara que houve anistia tanto para os que se opuseram à ditadura militar, quanto para os agentes do Estado acusados de violações de direitos humanos. Essa sentença, de que há votos discrepantes, na verdade, faz parte da longa tradição dos tratamentos diferenciados que a elite dominante no Brasil outorga às suas Forças Armadas e, em especial, ao Exército.
Não é só o Supremo, de resto, que se empenha sedulamente em manter, na contramão de nossas nações irmãs da América do Sul, essa linha que nos afasta do princípio de que a lei é igual para todos.
Esse temor reverencial o compartilham os três Poderes da República. Baste para marcar a nossa triste condição em termos de fazer valer a lei para todos indistintamente, contemplar o que nossos irmãos argentinos já o lograram, e desde os primórdios da redemocratização, com o cívica coragem do Presidente Raul Alfonsin (1983-89).
Dessa timorata postura, que pouco tem de Epitácio Pessoa, presidente do Brasil de 1919 a 1922, vemos sinais por toda parte. Na justiça, v.g., perdura um anacrônico Superior Tribunal Militar, assim como outros tribunais castrenses, instituídos pelos artigos 122 a 124 da própria Constituição Cidadã.
Mas voltemos ao tema do presente artigo, que é apenas decorrência de um estado geral de coisas, que talvez algum dia à presente geração ou a seus descendentes será concedido o orgulho de superar.
Com efeito, existe contradição inarredável na laboriosa construção oficial que procura validar lado a lado o reconhecimento da jurisdição internacional em direitos humanos e o discurso contrafeito – e não só do STF – de que as decisões das cortes nacionais possam conviver, em igual validade, com aquelas da Corte interamericana de San José na Costa Rica.
Alguns de nossos ministros do Supremo semelham desconhecer o gigantesco avanço no direito internacional, quando se determinou que para os crimes contra os direitos humanos não há anistia, nem portanto decurso de prazos. Essa luta não é só comprida, senão de todos os continentes. Assistimos na Espanha a batalha entre o juiz Baltasar Garzón, da Audiência Nacional, e o magistrado Luciano Varela, da Corte Suprema. Não há dúvida que, a despeito das peripécias, a posição de Garzón, em favor da imprescritibilidade dos crimes contra os direitos humanos, deverá prevalecer ao cabo de um longo embate.
Apesar de o que afirma o Ministro Cezar Peluso de que a decisão da corte de San José não muda a decisão tomada pelo tribunal que ele preside : ‘Ela não revoga, não anula a decisão do Supremo’, existem opiniões abalizadas que discordam. Segundo o especialista André de Carvalho Ramos, professor de direito internacional e direitos humanos da U.S.P., o Brasil deverá cumprir a decisão da Corte, conforme a qual só se concretizará o direito à verdade e à Justiça no país com a investigação e, se necessário, a punição dos acusados de violações.
O Ministro Carlos Ayres Britto, voto vencido no julgamento da Lei da Anistia, concordou que prevalece a decisão do STF. Mas admitiu que o Brasil fica em posição delicada no âmbito internacional: “Isso é uma saia-justa, um constrangimento para o País, criado pelo poder que é o menos sujeito a esse tipo de vulnerabilidade”.
Carvalho Ramos, da U.S.P. nos esboça o que pode ser interpretado como uma saída para governo e S.T.F.: “Não se trata de opor aquele corte ao STF. As decisões do Supremo se referem às leis nacionais, mas estamos diante de um fundamento jurídico novo, que são as obrigações internacionais do Estado brasileiro.”
Nesse sentido, consoante o professor Oscar Vilhena, da Fundação Getúlio Vargas, o nosso país vai escolher sua posição no cenário internacional: “O Brasil precisa saber se quer ficar como o Irã ou como a Suécia no âmbito internacional.”


( Fonte: O Estado de S. Paulo )

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Nota para o Prefeito Eduardo Paes

Ontem, senhor Prefeito, ouvi as palavras do Ministro da Saúde, José Gomes Temporão, que se dirigiu ao público telespectador para alertar sobre a necessidade do combater aos focos de infestação do mosquito Aedes aegypti, transmissor da dengue. Na sua campanha para conscientizar a população, apontou para a possibilidade de criação de focos nos usuais sítios, como em pneus, garrafas. poças e caixas d’água, vasos de plantas etc. A tal propósito, me chamou a atenção a circunstância de que até uma simples casca de ovo pudesse ensejar depósito de água suficiente para a criação das larvas do vetor da dengue.
Ao escutar a observação do Ministro da Saúde, não pude deixar de recordar-me que existe na Praça General Osório um local muito mais propício para os focos de infestação desse mosquito responsável por epidemias no Rio de Janeiro, com tão pesada carga de sofrimento e morte para os cariocas.
Estranhou-me que o Chafariz das Saracuras, obra atribuída a Mestre Valentim, que atualmente adorna o centro da Praça, com o seu lençol d’água circular possa vir a constituir, pela desídia dos eventuais funcionários encarregados, um provável criadouro de focos de infestação do Aedes aegypti.
Com efeito, a água está geralmente parada. Coberto de folhas de árvore e de detritos, o lençol existente no espelho d’água parece ideal para que a fêmea do mosquito aí deposite seus ovos.
Na verdade, é raro que saia alguma água limpa do cano que alimenta esse espaço destinado em outros tempos a formar laguinho decorativo ou espelho d’água. Ficando parada e mesmo estagnada a maior parte do tempo, semelha o caso de perguntar-se qual a serventia desse ‘espelho’ senão a de servir de transmissor da dengue para o bairro de Ipanema.
Diante do presente abandono que é a situação habitual da água acumulada em torno do chafariz das Saracuras, afigura-se de toda relevância que o senhor tome urgentes providências para que a praça General Osório não se transforme em gigantesco criadouro do Aedes Aegypti. De qualquer modo, não seria surpresa que vistoria aí já não descobrisse a incidência de diversos focos.

Terá Jeito esse País ?

Será acaso natalino o espetáculo com que ontem nos brindou o Congresso ? Repetindo a invectiva famosa, será, senhores congressistas, que Vossas Excelências não tem pejo de proceder dessa forma, aos olhos da Nação ? Agir assim, a toque de caixa, em uma geral distribuição de favores com numerário que não lhes pertence mas sim ao contribuinte, ao Erário nacional, que deveria ser tratado com o respeito e a mesura que sempre fez por merecer ?
Será acaso esse o tratamento que igualmente, como representantes do Povo soberano,tem por hábito seguir, tratando-se de questões e assuntos do interesse precípuo deste mesmo contribuinte ? Ou será que as matérias a ele pertinentes sóem arrastar-se por intermináveis comissões nas duas Casas, muita vez acabando acidentados percursos nas anônimas gavetas dos arquivos da deslembrança de tantas assumidas promessas ?
Precisemos estas interrogações, para que o leitor do futuro não fique confuso quanto à sua imediata motivação.
A autoconcessão de vantagens, e em especial as concernentes a salários e vencimentos, o senso de justiça e a noção de comedimento ensinam que carecem de ser realizadas com mínimo de atenção e dignidade. Fazê-las como definido pela imprensa a toque de caixa, depõe sobretudo contra a autoridade de quem decide. Demasiada pressa pode refletir-se não só em veicular ideias porventura errôneas em termos de avidez e eventual precipitação, mas também no atendimento, às carreiras, de temas que merecem mais do que simples cuidados protocolares.
Ao invés disso, os senhores deputados e senadores aprovaram na quarta-feira, 15 de dezembro, em duas votações em um único dia, reajustes em seus próprios salários e nos vencimentos do Presidente, do Vice-Presidente da República e dos Ministros de Estado. Passam a receber, todos eles sem distinção, R$26.723,13, a partir de primeiro de feveiro p.f.
Esse total está baseado no que hoje percebem os Ministros do Supremo Tribunal Federal. Suas Excelências, diga-se de passagem, já tem previsto no Orçamento da União um reajuste de 5,2%.
Que a concessão de tal generalizado aumento foi feita de afogadilho semelha não restar dúvida na maneira indistinta por que se caracteriza a sua implementação. A primeira pergunta que surge é se todas essas autoridades deveriam ter igual remuneração . Acaso inexiste hierarquia e lógica nessa atribuição ? Por exemplo, tem funções comparáveis um ministro demissível ad nutum e o Presidente da República, para auferirem o mesmo salário ? E não há distinção tampouco entre o Primeiro Mandatário da República e os congressistas ?
E não se diga que se por muito permaneceu desequilibrada a remuneração, tal será motivo para justificar esse nivelamento.
Tampouco aqui se discute se a medida deveria ou não ser concedida. Contudo, o considerável atraso, sobretudo no reajuste dos cargos do Poder Executivo, não precisaria ser desfeito de forma tão açodada.
Nesse fim de ano assistimos a outros acontecimentos inquietantes. A Lei da Ficha Limpa, a Lei Complementar nr. 135, que se deve unicamente ao empenho popular que motivou a sua tramitação em Câmara e Senado, não vem merecendo ultimamente a atenção e sobretudo a resposta que este anseio da Sociedade pressupunha receber da Justiça.
Nos últimos dias, pessoas que súpunhamos afastadas por um tempo por graça dessa lei moralizadora, estão retornando ao Legislativo, por força de novas interpretações de artigos da lei da Ficha Limpa, além de outras súbitas mudanças nas decisões da Justiça.
É desenvolvimento imprevisto, que vai ao arrepio da vontade da opinião pública, em especial dos cerca de dois milhões de signatários da petição que originara a oportuna proposta de legislação de iniciativa popular, uma das grandes marcas da Constituição de Ulysses Guimarães.

( Fonte: O Globo )

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Richard Holbrooke: in memoriam

Richard C. Holbrooke, aos sessenta e nove anos, faleceu na segunda-feira, treze de dezembro. Operado de urgência por ruptura na aorta, não resistiu às complicações derivadas da cirurgia com 21 horas de duração.
Desde os anos sessenta, serviu a todos os presidentes democratas. Sempre empenhado em missões diplomáticas, o simbolismo da atividade se marca até nas circunstâncias que cercam a intervenção de emergência a que teve de submeter-se.
Com efeito, o problema médico se manifestou em reunião que mantinha, no State Department, com a Secretária de Estado Hillary Clinton. E entre as suas últimas palavras está o que disse para médico atendente: ‘devemos encontrar um jeito de acabar com a guerra no Afeganistão’.
Designado pelo Presidente Barack Obama Representante Especial para o Afeganistão e o Paquistão, Richard Holbrooke recebeu tais árduas missões com a seriedade e disposição que sempre haviam assinalado as suas empresas anteriores.
Os Acordos de Paz de Daytona de 1995 constituiram, sem dúvida, a obra prima de sua carreira de negociador. Máxime nessa ocasião memorável, o intraduzível termo inglês troubleshooter [1]lhe cai como uma luva, a ele que pelo seu estilo no modo de atuar, pela coragem e competência em arrostar os desafios estaria longe de evocar qualquer semelhança com a diplomacia de punhos de renda.
A complexidade dos problemas étnicos e religiosos relativos à antiga Iugoslávia, Holbrooke os enfrenta com o mesmo destemor com que estabelece o seu relacionamento com Slobodan Milososevic, então presidente da Sérvia. Pode-se afirmar com segurança que boa parte de seu sucesso como arquiteto dos acordos de paz que terminaram com o conflito na Bósnia-Herzegovina se deve à franqueza com que confrontou o principal responsável pela eclosão do conflito.
Ao se afirmar diante de alguém com o temperamento de Milosevic, Holbrooke realiza o que para outros seria impossível – manter a relação e o diálogo com o ditador sérvio em nível de respeito mútuo e de igualdade.
Ante a complexidade da tarefa, o êxito alcançado pelo negociador de Daytona avulta-se a ponto de redimensionar-lhe todas as outras missões, pregressas ou não.Dragan Cavic, antigo presidente da Bósnia, disse: ‘É de surpreendente simbolismo que Holbrooke tenha morrido no dia do décimo-quinto aniversário do Acordo de Paz na Bósnia, o dia que configura a principal realização de sua existência política.’
Os encargos recebidos do Presidente Obama – Afeganistão e Paquistão – consumiram-lhe os últimos anos. As características de tais missões nestes dois países as aproximam do impossível, mesmo para alguém com o denodo, o tirocínio e a inventiva de Richard Holbrooke.
Por outro lado, não obstante a capacidade de trabalho e obra diplomática, Holbrooke não alcançaria a sua ambição precípua de tornar-se Secretário de Estado. Em 1997, Bill Clinton escolheu Madeleine K. Albright, ao invés dele. E estava na short-list quando Obama indicou Hillary Clinton, em 2008.

( Fonte: International Herald Tribune )

[1] Mediador; reparador de problemas.