sábado, 31 de maio de 2014

O Legado de Dilma

                             

       Com que plataforma pretende a Presidenta pleitear um segundo mandato? Apesar do volta Lula, seu criador parece ter tirado o corpo fora, temendo assombrações do passado, ou interrogações da idade. O nervosismo nas hostes petistas também semelha haver diminuído um tanto, embalado pelas cantigas de ninar das últimas prévias, com tímidas indicações de que, se bem sacudida, a candidatura à reeleição continuaria com os sinais vitais preservados.
       A suposta gerentona – conforme insinuava a propaganda lulista – não mostrou a decantada competência para administrar a República. Na verdade, a confusão, se proposital ou não, tomava alhos por bugalhos. Uma coisa é ser chefe de gabinete, e cuidar da rotina administrativa, que o nosso apedeuta tem dificuldade em tratar. Outra, é sobraçar as questões do Brasil, com a capacidade de saber privilegiar os grandes temas, reservando os mergulhos nas minúcias para momentos excepcionais, que só os grandes líderes logram empregar.

        Nesse contexto, já mencionei as reservas sobre uma presidência de Dilma – aludidas na coluna de R. Noblat - que personalidades maiores repassaram a Lula da Silva, calcando nas dúvidas sobre as alegadas grandes virtudes de sua criatura. Por motivos não suficientemente esmiuçados, o projeto seguiu em frente.

        O domínio do Partido dos Trabalhadores no Brasil, com doze anos, cada vez mais se assemelha àquele dito interminável do Partido Revolucionário Institucional (PRI) do México. E os sinais estão muito menos para Lázaro Cárdenas, que com sua integridade e visão de estadista livrara o México do maximato de Plutarco Elias Calles. Na verdade, esses indícios estão muito mais para os seus distantes sucessores no final do século vinte, com o seu artificialismo nato da fraude pandêmica e com a corrupção de  regime carcomido pelo poder.

         Deixemos os Estados Unidos Mexicanos, voltemos para nossa Pindorama. No seu último ano de mandato, tem dito mais ao que não veio, do que propriamente terão esperado os seus eleitores.

         Em primeiro lugar, ela nos deixa um legado que o povo do Brasil não merecia. O seu antecessor Lula da Silva, para conseguir quebrar a série de malogros eleitorais, viera a público prometer que respeitaria as conquistas do Plano Real. Como o povão acreditou, foi eleito. E, a bem da verdade,   no primeiro mandato e em parte do segundo, respeitou o compromisso.

          A reunião dos Estados Gerais no Reino de França era precedida pelo chamado Cahier de Doléances (Caderno de queixas). Não, prezado Leitor, não quero trazer esse arcaísmo para o Brasil. Mas seria altamente previsível que se coletássemos os lamentos e os pedidos do Povo brasileiro, dona Inflação compareceria em primeiríssimo lugar.

          Dilma Rousseff, com seu desenvolvimentismo descabelado, voltou no tempo, e não para aquela mítica época perseguida, no filme de René Clair, pelo ator-personagem Michel Simon, sempre almejando voltar aos bons velhos tempos. Pois não é que por sua receita acabamos regressando aos pródromos da distopia (falsa utopia) inflacionária ?

          O seu próprio Ministro da Fazenda, o patético Guido Mantega, em sua última entrevista culpa a inflação pela estagnação do PIB (este subir tão só 0,2% no trimestre ) !

          Na realidade, Mantega esquece de mencionar que a inflação está aí pela política fiscal irresponsável de Dilma e seu governo. A têmpera não é o forte de Guido Mantega. Já nos últimos anos de Lula da Silva, colaborara com muitas, demasiadas capitalizações – empréstimos fajutos do BNDES ao Tesouro para criar fundos inexistentes (do prisma fiscal, porque não proporcionados por tributos coletados pelo Estado). É uma brincadeira inflacionária, que só se coaduna com a ficção contábil de Dilma.

         Ao tratar da inflação, nada resolve considerá-la – como o faz, sem pestanejar, o Ministro da Fazenda – como se ela fosse fruto de geração espontânea.  Na verdade, esse elefante - o dragão melhor dizendo – está na sala de estar dos lares brasileiros (e na cozinha e na vida cotidiana de todos nós) por causa de uma dílmica desorientação destrambelhada (ddd), que como no velho provérbio semeia ventos, para colher tempestades.

         Além dos vexames da contabilidade fiscal ficcional – que nos aproximam da Argentina, e nos fazem passar vergonhas no FMI ao ter questionada a dívida líquida, como base de avaliação – esse desgoverno econômico e financeiro passa por muitos encruzilhadas indo até à Lei da Responsabilidade Fiscal.  Compreende-se que uma administração fiscalmente irresponsável (na prática, quer reintroduzir os abusos banidos pela LRF) queira adulterar essa conquista da legislação financeira, autêntica chave da cumieira da construção do Plano Real.

          Assim, vou ficando ora por aqui.  As realizações da governança de Dilma não se limitam a trazer a inflação de volta. Ela está em toda parte, mesmo na boca daqueles que deveriam combate-la e não lamentar-se como se fosse por geração espontânea, um autêntico fenômeno da natureza...

                                                               ( a  continuar )  

sexta-feira, 30 de maio de 2014

CIDADE NUA VII

                            

                               A   DAMA   DO   ELEVADOR


                                                                  
                                                   X I I I

 

                 Desta feita, os dois chegaram quase ao mesmo tempo. Como ele vinha do trabalho, a encontrou um pouquinho mais arrumada. Lá estava ela, na mesinha conhecida, a levantar-se ansiosa. Em torno, havia menos gente, por causa da hora. E foi com o mesmo ímpeto que os dois se abraçaram.

                 “Conta pra mim o que você vai aprontar...”

                 “Ah, sou eu então que vou aprontar”, disse, sorrindo. “Mas me deixa o tempo de molhar a garganta... a minha e a tua.”

                Yvone fez o muxoxo de regra, porém ajudou na chamada do garçom. E para espanto de Albano, aderiu ao chope.     

                A bebida veio quase sem colar, como era do gosto do casal. Mas estava geladinha.

                “Temos de arranjar um esquema que te liberte do terror das incertas do Eurípides.”

                “E como isso seria possível?”

                 “Simplérrimo. Basta encontrar-nos em horas do dia, nas quais a tua ausência de casa não pode criar suspeita, mesmo a mais ciumenta das criaturas.”

                “Será que vai funcionar?”, perguntou ela, desconfiada.

                “E por quê não? Há mais de um motel nas cercanias, em que podemos entrar de táxi... E você, com o celular, poderá engabelá-lo à vontade, se ele voltar de repente para casa...”

                Hmm, não sei...”

                “Tenho uma sugestão pra te fazer...”, avançou ele.

                Yvone, a quem a aparente simplicidade da solução de não ser apanhada fora de seu apê, em horas que Eurípides presumiria que ela devesse estar, surgia como demasiado fácil e por isso enganosa...

                “E se ele chegasse à tardinha, e eu ainda estivesse fora?”

                “Uma coisa seria ele chegar à noite, lá pelas dez, e não te encontrar. Outra é o teu marido entrar em casa na hora do jantar...”

               Enquanto descreve as possibilidades e busca convencê-la da segurança desta ou daquela hipótese, ele tenta mergulhar nos seus olhos. Por mais prudente que a idéia lhe pareça, o piscar nervoso ou o rosto mais contraído não lhe dão a impressão de que ela consiga sequer imaginar qualquer encontro dos dois a salvo desta tortura. E dele se vai apossando sentimento misto de raiva e desânimo.

                                                       *

               Embora não fosse dado a muitas leituras, outro dia o amigo João lhe passara um livro de autor pouco conhecido. O que lhe impressionara havia sido o caráter escorregadio da heroína. Posto que aparentasse interesse pelo jovem a tentar conquistá-la, nas diversas situações sempre conseguia eludir-lhe os esforços, recorrendo a complexo jogo de ilusórios afagos e oportunas esquivas.

              Sem saber de suas peripécias sentimentais, João lhe recomendara o romance, sobretudo pela descrição do caráter da personagem.  

             “Esse tipo de mulher é coisa rara hoje em dia. Ai daquele que se interesse por ela!”

             “E que tipo seria?”, perguntou Albano.

             “É o que os franceses chamam de ‘allumeuse’, vale dizer, aquela que acende.”

              Se não entendera bem de que se tratava, a leitura do romance logo o prenderia, ao ver o comportamento descrito. Seria uma mulher que se compraz em provocar atenções e interesses, que teima em deixar insatisfeitos. E diante das atitudes de Yvone e do seu medo dos ciúmes de Eurípedes, principiava a perguntar-se se João não tivera a intuição de apresentar-lhe a personagem, mesmo sem saber de suas aventuras...      

                                                       *

             Hellow...”

             Meio sem atinar, ele olha para ela.

             “Onde você andava ?...”

             “Não compreendo...”

             “Não sabia que ‘cê tinha o hábito de viajar...”

             “Não dá pra entender...”, diz ele.

             “Por uns instantes, ‘cê me pareceu estar muito, muito longe daqui...”

             “Ah!... estava pensando...”

             “E se pode saber em quê ?”

             “Em que talvez esteja fazendo papel de bobo.”

             “Vamos voltar à mesma estória ?”

             “Se não se encontra saída para um problema que, na verdade, não existe, não há outro jeito...”

             “Você me dá a impressão de não querer entender...”

             “E, além de sua fobia, há qualquer coisa pra entender ?”

             “Me desculpe, mas assim não dá mesmo.”

              Por um tempo, Albano ficou bovinamente contemplando a saída de Yvone, em meio ao burburinho. Depois, esvaziou o copo e, acenando para o garçom, fez sinal de mais um chope.

 

                                                    X I V    

 

              Albano não era um intelectual. Tampouco se poderia defini-lo como um mané, um filisteu. Ele mesmo se colocava em um meio-termo. Lia um pouco, mas não muito. Sem ser cinéfilo, gostava de um bom filme, e não tinha paciência com chanchadas. Poderia ir a museus, visitar exposições, mas em geral não por iniciativa própria. Se não se considerava um maria-vai-com-as-outras, admitia que nesse campo não tinha muita iniciativa. Contudo, se lhe indicassem um programa cultural e se sentisse convicção em quem recomendava, poderia até ir.

             Por que estava pensando naquilo? Francamente, não sabia...

             Nas suas conversas com Yvone, não dera para determinar-lhe os gostos. Tinha, no entanto, certeza de que ela não era nenhuma intelectual. Quanto às suas preferências, não discernia muita coisa, talvez pela simples razão de que não houvesse muito o que descobrir.

              De todo modo, ao perder a paciência, ele lhe fornecera de bandeja o motivo para desvencilhar-se de relação que ela desejava e, ao mesmo tempo, pelo medo que o marido provocava, achava perigosa e angustiante.

              Yvone deveria saber que a probabilidade de ser apanhada por Eurípides não era das mais altas. Mas o seu temor era demasiado grande para conviver ainda que com a probabilidade residual de que desse zebra.

             Por isso, malgrado a química entre eles, a sua moça do elevador queria e não queria. Ele errara, porque se esquecera de que carecia de muita paciência. Como na pescaria de alto mar, o pescador tem de cansar a presa, antes de içá-la para o barco. Também naquela relação, o açodamento não levaria a nada, ou antes provocaria a ruptura.

             Foi justamente o que acontecera... Afobado, desperdiçara a ocasião, ou, pior ainda, dera à namorada – que outro nome poderia dar-lhe? – uma saída para situação embaraçosa. Ficara claro que as possibilidades de serem apanhados por Eurípides eram muito reduzidas, quase impossíveis... Mas no seu pânico, a lembrança do marido já era suficiente para colocá-la em situação de ameaça. Só com muito jeito e persistência ele lograria expulsar de sua mente o espantalho do esposo...

             Ao contrário disso, quisera forçar a situação, mostrar a falta de lógica no temor de Yvone. Com isso, só conseguira reforçar a imagem do marido e sua implícita ameaça. Por entrar em argumentação que não a deixava esquecer o próprio medo, Albano só atiçava um fogo que, no caso, ele deveria ir apagando aos poucos, até que com sinuosas doses de ternura e carinho, ele amorosamente pusesse para dormir resistência obstinada, que não mais teria propósito de persistir, envolvida e de certo modo sufocada pela sua presença. Com isso, sufocaria em agrados os confusos pavores, como se retirasse o ar remanescente aonde pudesse ainda permanecer a centelha do medo... Com o abraço do amor, ele a conduziria para as tépidas aléias onde viaja a voz ciciante das promessas sem termo, e paira a sensação de um infinito sem barreiras...

             “O senhor quer pagar no cartão ou em dinheiro?”

              Ele não tomara cento e dez chopes, como gritava o bêbado na mítica viagem de ônibus para a antiga Barra, que hoje não mais existe, enterrada que foi pela especulação imobiliária.   

             No entanto, lá estavam cinco bolachas de chope... Bebera demais e agora, se arrastaria para casa... Que programa!

               

                                                      X V

 

              Alô, Yvone, sou eu...”

              “...”

              Meu amor, minha querida, atire a primeira pedra quem nunca errou...”

              “Que é que é, Albano ?”

              Sentiu a glacial recepção, mas resolveu ir em frente. Afinal, quem fora grosseiro, fora ele.

              “Meu amor, pisei na bola, é verdade... Será que não tem perdão?”

              “...”

              “Bem, eu só queria conversar com Você...”

              “Depois de ontem, não vejo muito propósito...”

               “Pô, amor, me dá uma chance...”

               “Que seria?...”

               “Que tal um passeio a Petrópolis ?”

               “Petrópolis!? E como seria tal passeio ?”

               “Deixa por minha conta.”

               “Você poderia especificar um pouquinho mais como seria o passeio ?”

               “Pro dia eu vou alugar um carro...”

               “Seria no sábado, então?”, perguntou ela, meio desconfiada.

               “Sim! Marcaríamos um ponto aqui perto, onde eu te apanharia.”

               “Tá bem.”

               “Posso ir em frente?”

               “Ok.”

               “Pra amanhã, providencio o carro. Aí te telefono e marcamos o lugar.”

               “Tchau, então”, disse ela e desligou.

                As dúvidas assaltaram Albano depois. Será que ela cumpriria o combinado? Será que não aprontaria alguma coisa, com medo de Eurípides? De qualquer forma, pensou, não tinha saída. O jeito era arriscar. Só esperava não gastar o dinheiro à toa.

                                                          *

                Estava no ponto de ônibus, conforme prometera. O local distava cerca de 1km do edifício deles, sem ficar na mesma rua. Arranjara um Volks, mas não dos modernosos. Embora fossem para a serra, preferira um com ar condicionado.

               “Oi! Um Fusca! Há quanto tempo não andava nele...”

                Como antecipara, Yvone não fizera menção de beijá-lo. Preocupado em tirar o carro do posto – justo chegava um ônibus -, ele a olhou de relance.

                Até tomarem a avenida Brasil, permaneceram em silêncio.

                “O ar está ok pra você?”

                “Tudo bem.”

                Pouco depois da entrada para a estrada de Petrópolis, ele estendeu a mão, e acariciou-lhe o braço nu.

                “Que bom que você está comigo.”

                Os olhares se cruzaram. Ela já não lhe parecia tão distante.

                “O que ‘cê prefere? Paramos num desses bares de beira de estrada para cafezinho e biscoitos, ou vamos em frente?”

                “Acho melhor a gente rodar mais. Lá fora tá muito quente...”

                Em breve deixaram para trás o comércio – até por acesso a motel passaram – e avançaram pela baixada.

                “Nunca gostei muito desse trecho...”, suspirou Yvone.

                “É? Engraçado, eu também...”

                “Você tá querendo me agradar...”, disse ela, sorrindo. Ele não deixou de ver que seu olhar não estava mais tão arisco.   

                                                            *

                Mais tarde, parou em local onde vendiam  amantegados da serra. Albano logo percebeu que eram do gosto de Yvone. Achava até graça que ela preferisse não ficar com os pacotinhos. Pela frequência, porém, com que os pedia, Albano se divertia. E mais ainda com a mãozinha estendida, que ia depressa apagando os resquícios da carga negativa do outro dia.

                A sua queda pelos biscoitos caiu bem para quem tratava de apagar as memórias da rusga. Nisso ele era mestre. Não se afobava. Tudo que lhe viesse a calhar utilizava como se nada fosse. Sem nunca forçar a barra, com muito jeito ele tratava de apagar as marcas e a resistência deixada pelo episódio.

                Assim, ao chegarem a Petrópolis, depois do Quitandinha, mostrou-lhe os pontos principais: casa da família imperial, o Palácio Rio Negro com seus anexos, a rua Ipiranga e a da Barão do Rio Branco. Ao passarem pelo centro e o rio Piabanha, sentiu que ela já se fatigara. Tratou, portanto, de estacionar o carro perto do restaurante que lhe tinham recomendado.

                “Penso, meu amor, que você vai gostar.”

                Procurou controlar a expressão, dizendo o meu amor como se fosse algo natural no seu convívio. De esguelha, buscou no semblante alguma contração ou mostra de estranheza. Como nada visse, tocou-lhe, de leve, o braço nu, do jeito de quem delicadamente orienta a companheira para tomar uma certa direção.

                 Do canto do olho, viu que ela não reagia. Sentiu, então, que com um pouquinho mais de paciência ele a teria de volta, virando de vez a página da afoiteza no bar do Meier.

                 Por isso, ao adentrar no restaurante, eludiu a indicação do maître – que lhes queria colocar em mesa com cadeiras separadas – e a levou para mesinha de canto, com  pequeno sofá para acomodar a dupla.   

                 Ela não reagiu, nem mostrou desagrado pela circunstância de ficarem muito próximos, juntinhos mesmo.

                 Logo a seguir, por instâncias de Albano, e não sem negacear um pouco, acabou aceitando a caipirinha que o garçom oferecia.

                 Mergulhando nos seus olhos, ele disse, levantando o copinho:

                 “A nós!”

                 “A nós...”, balbuciou ela, com leve aceno de brilho nas pupilas.   

                                                           

                                                           *       * 

 

 

 

Joaquim Barbosa, Presidente do Supremo


                         
          Joaquim Barbosa, nomeado por Lula ministro do Supremo, mostrou ao que veio, mas não no sentido do presidente que o nomeou, dos ministros seus contemporâneos a quem surpreendeu, da presidenta que perdeu boa oportunidade de mostrar grandeza, e dos sólitos compadres e comadres da imprensa, que não poderiam entende-lo, por não adequar-se aos usuais modelos da Corte.

        Joaquim Barbosa sabe quão sinuoso é o preconceito. A mor parte das vezes ele subjaz às críticas acerbas, às ironias fora do esquadro, à súbita contradição nos critérios aplicados. Nesse campo lamacento, é de considerar-se um galardão e um primor de hipocrisia, que instituição a qual me foi cara por cinquenta anos o tenha tristemente reprovado em dúbio exame oral. Seria oportuno que para escarmento da cínica injustiça um presidente futuro o convide para a cadeira de Rio Branco.

         Como a rosa não vem sem espinhos, nesse contexto sobressai a análise crítica de Joaquim Falcão. Teve mais desassombro do que outros, que preferiram colocar como cerejas em um bolo amargo os escassos elogios. Dir-se-ia que para esses existem apenas como maneira de ressaltar os apodos e as verrinas.

         Não sei se Joaquim Barbosa sai da presidência do Supremo para entrar na história. É cedo para que os observadores se aventurem nessa senda, pois o cotejo com Getúlio Vargas na verdade não se coloca. Além da passada tragédia, as circunstâncias são afortunadamente muito diversas.

         Mas querendo ou não, com Branca de Neve e seus anões por perto, o presidente Joaquim Barbosa, com traços largos e passos ainda maiores fez história, e quem sabe? continuará a fazê-lo para perplexidade de muitos que se sentem mais à vontade  com as empoladas mediocridades e os sinuosos figurantes de Santa Madre Rotina.

         O mais engraçado nisso tudo é o Povo, aquele que alguns chamam soberano. Ele não tem as dúvidas, nem os risos escarninhos da gente da Corte, a quem a presença e a atuação de Joaquim Barbosa muito incomoda. Ao invés, não se peja de aprovar-lhe a conduta, lendo com facilidade o sentido de seu propósito que tanto perturba aos corifeus e ao  bem-comportado público dos paços de governo e adjacências.

         Joaquim Barbosa é o homo novus, de uma espécie rara, que floriu na República Romana. Seria um cometa, que se distingue, como na Antiguidade, pelas próprias qualidades, que diferiam das de seu entorno. Os romanos lhe saudavam a vinda pelo que tinha de renovador. Mostravam, em assim agindo, que bem compreendiam o alcance do fenômeno, que lhes trazia, pela novidade, contribuição relevante para a maior grandeza de Roma. A aparente generosidade do gesto refletia o interesse maior da República. Mas para tanto tinham o propósito facilitado pela mesma grandeza de que eram partícipes.

          

(Fontes:  O Globo, Folha de S. Paulo)

quinta-feira, 29 de maio de 2014

É só da Ucrânia o sangue derramado ?

                       

       O Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, costuma inculpar os ucranianos, como se mal agissem ao defenderem sua terra. Tampouco aprova combaterem as ações dos ditos ‘separatistas’, que, por artes misteriosas, aparecem armados de mísseis do tipo Stinger (portáteis e terra-ar).

       Na verdade, unidades formadas por agentes ‘com negros uniformes descaracterizados’, se ‘apareceram’ na operação que levou à anexação da Crimeia, surgem agora nas regiões do Leste ucraniano.

       Depois de assinar o último acordo de Genebra – que não foi respeitado pelo Kremlin sequer por um dia -, Lavrov ora recomenda moderação à Ucrânia, suspeita de empenhar-se na defesa de sua terra.

       O falso enigma do apoio do Leste ucraniano à Rússia, em realidade é conto encomendado pelo governo de gospodin Vladimir Putin. Há uma minoria de ex-combatentes  e da classe operária, que deseja a união com Moscou, por ser saudosista da antiga URSS. A maioria da população, no entanto, deseja permanecer na Ucrânia, se possível com mais direitos federais. Conforme já foi aqui referido, essa fratura no leste ficou bem clara na última eleição. Se a tendência à reunião com a mãe-russa fosse realmente majoritária, ela prescindiria da intimidação. Para evitar que a participação na recente eleição presidencial desmentisse a patranha de que o Leste aspira ser anexado por Moscou, não careceria de impedir o pleito pelo fechamento das seções eleitorais. Assim procedendo, por temerem os resultados das urnas, os separatistas mostraram a própria fraqueza.

        O candidato-eleito Petro Poroshenko pode esperar tudo do Kremlin, menos boa fé. Assim como Herr Hitler não se negava a reunir-se com os presidentes dos países que pretendia anexar em seguida, tampouco Vladimir Putin e seu eficiente Ministro Lavrov deixarão de mostrar-se corteses e dispostos a conversar.

        Moscou procura mostrar assim bom-comportamento, para evitar ulteriores sanções do Ocidente.  O temor de Putin, nesse sentido, terá mais presente o Congresso americano, eis que bem conhece quanta água para o seu moinho pode trazer-lhe a moderação de Barack Obama.

        Em área oriental, as forças separatistas controlam o aeroporto de Slaviansk, que se situa entre Kharkov, ao norte, e Donetsk que está no sul próximo do mar de Azov. Tentativa do exército ucraniano de retomá-lo foi rechaçada, pela derrubada de helicóptero através de míssil tipo Stinger (terra-ar e portátil), com a perda de catorze militares, inclusive do general  Serhiy Kulchytskiy.

        Os rebeldes também voltaram a sequestrar quatro monitores da  Organização de Segurança e Cooperação Europeia (OSCE), de nacionalidade turca, suíça, dinamarquesa e estoniana.  Pelo visto, os observadores da OSCE (de que a Rússia é membro) incomodam as forças ditas pro-Rússia.

        Aliás, a batalha pela posse do aeroporto de Donetsk (vencida pelo exército da Ucrânia) contribuíu para levantar um pouco mais o véu sobre a real composição das forças rebeldes. Nas cerca de 50 baixas sofridas pelos ‘separatistas’ havia 33 cadáveres de russos que serão repatriados.  

         Se os óbitos de cidadãos russos aumentarem, a sua volta ao solo russo, além de desvendar a lenda do levante espontâneo e autóctone  na Ucrânia, pode arranhar a popularidade do presidente de todas as Rússias.  Se as aventuras além-fronteira acarretam a perda de muitos nacionais, aumentarão as perguntas dos compatriotas de Vladimir Putin acerca da serventia e eventuais más consequências das ilusões do imperialismo e do irredentismo, que não são tão anódinas e indolores quanto assegura a alegre cobertura da mídia moscovita...

 

(Fonte: The New York Times)    

       

 

quarta-feira, 28 de maio de 2014

CIDADE NUA VII


                                            A  DAMA  DO  ELEVADOR                                 

                                      
                                                                X

                

                 O celular tocou quando estava no ônibus. Afobado, custou a retirá-lo do bolso do casaco.

                 “Oi. Desculpe o mau jeito, querida...”

                 “Não esquenta. ‘Cê tá na condução, né?”

                 “É. Tal o aperto, que fica meio complicado. Mas já tudo sobre controle. E aí?”

                 “Sem novidade. Chamou da primeira parada. Daqui a pouco, chega em São Paulo.”

                 “Daqui a uns vinte, no máximo trinta minutos, tou em casa.”

                 “Quando chegar, deixa tocar três vezes e desliga... depois é só esperar um pouquinho...”

                 E sem esperar que ele responda, cortou a ligação.     

                                                        *

                 No apartamento, Albano optou dar ajeitada na aparência, antes de ligar para Yvone. Tomou o que chamava banho de gato, lavou as axilas, deu escanhoada no rosto, e após borrifar-se com  água de colônia  vestiu o seu melhor conjunto de camisa sport e calça jeans.

                 Liga então para ela, ouve tocar três vezes e, conforme a instrução,  desliga. Só que no nervosismo a chamada ainda terá um quarto toque antes de interromper-se...

                 Inseguro, pensou se deve repetir a operação, para que o código seja respeitado. Acaba achando que aquilo seria um tanto ridículo. Por isso, prefere ficar por ali.

                 Como fizera a sua parte, agora tem de esperar. Afinal, quem corria  riscos era ela. Embora tenha ímpetos de descer e bater na sua campaínha, sabe que pode tudo pôr a perder pela precipitação. Melhor, assim, ter paciência e aguardar a vez.

                                                        *

                 No entanto, os minutos foram passando e nada. Quinze, trinta, quarenta... Aquilo principia a enervá-lo. Por mais que reflita, não logra entender... Não ignora que as mulheres levam mais tempo para se arrumar. Todavia, a própria situação deles exclui a alternativa de jantar fora. Cercados por tantos olhos curiosos, e dada a natureza violenta do marido, seria correr risco estúpido, muito maior do que a rápida passagem por dois lances de escadas e o mergulho no longo corredor do edifício. Naquela hora, os moradores, ou estão jantando, ou acompanham do sofá o Jornal Nacional.

                 Não quero parecer nervoso, pensou, mas não seria talvez o caso de chamá-la outra vez? Aí, olha para o relógio e, como sempre, o tempo do aguardo, quando comparado com a frieza digital de seu cronômetro, não tinha relação com os minutos efetivamente transcorridos.

               Se aquilo o irrita um pouco, também o ajuda a relativizar a coisa. Pelo visto, a demora de Yvone existe mais na sua ansiedade de amante, do que na realidade de tê-la sã e salva dentro do apê com as cortinas cerradas. Dada a cercania dos prédios vizinhos e fronteiros, não havia outro jeito para resguardar-lhes a privacidade. Deixar as janelas abertas era a certeza de que seriam pasto para a alegre indiscrição de estranhos que, à falta de o que fazer, lhes devassariam a intimidade...

              Somente uma poderia ficar aberta. Ficava nos fundos e expunha a mata, que a noite enegrecia, a rocha abrupta, que afastava as invasões, e mais ao longe, luzinhas cintilantes e inconsequentes, na imensidão da paisagem e da abóbada celeste.

              Por isso, foi com certo ímpeto que levantara aquela persiana. Nenhum problema em deixá-la escancarada. Daquele lado teriam a ilusão da transparência, sem as claustrofóbicas barreiras ditadas pela sociedade. A única coisa de que não poderia esquecer seria fechá-la, quando apagassem as luzes. Senão, morcegos viriam visitá-los...    

                                                        *

              Quando voltou a olhar para o relógio, viu que alguma coisa deveria ter saído errado. Não era possível que ela tivesse deixado passar tanto tempo. Algo decerto teria ocorrido, e tão imprevisto que sequer permitira a Yvone usar o celular.

              De qualquer forma, ele não tinha outro jeito senão o de chamá-la outra vez, para por a coisa em pratos limpos.  

               No entanto, por mais que tentasse, o número dela sempre dava ocupado. Como não sabia que diabos estava acontecendo, não achou prudente deixar qualquer    mensagem na caixa postal.

                                                        *

               Já não olhou para o cronômetro quando resolve tentar mais uma vez. Uma sensação que não ousa definir dele se apossa. O celular continua inatingível, mas qualquer coisa que não define bem o impede de atender ao ritual da caixa postal. Será como se o recado fosse a própria admissão do malogro. Albano viveu todas aquelas horas embalado pela visão de um desejo por muito acalentado e mesmo preparado, para que, de repente, tudo se transforme em uma espécie de grito, largado no meio do éter sem qualquer resposta. Até mesmo na nua solidão do deserto, os gritos do viajante são, de certa forma, respondidos pelas pedras inanimadas de grutas e penhascos, pelo monótono escandir de suas palavras, a desfazer-se lentamente na desolação dos elementos...     

 

                                                         X I

 

                 Da noite mal dormida, acordou como se carregasse no corpo a bagagem da véspera, com o peso de suas indefinições e, sobretudo, da longa e inútil espera.

                 No entanto, o fato de estar atrasado para a repartição de alguma forma o ajudou a pôr de lado o sofrido desaponto.

                E foi mascando o pensamento de o que não pode ser por ora resolvido, resolvido está, é que seguiu para o trabalho, na lenta e desconfortável travessia da condução.

                                                        *    

                Sentado na escrivaninha, olhava desconsolado para a caixa de entrada. Seriam as férias de dois funcionários da sua seção que o tornara responsável por aqueles expedientes. Habituado às delgadas quotas que vinham dar na sua mesa, o volume da rotina o irritou. Por isso, a princípio olhou para aquela maçarocada como se não lhe dissesse respeito.

               Foi nesse momento que tocou a campaínha do celular. Não podia ser em hora mais desfavorável. Dois de seus vizinhos, se voltaram nas respectivas cadeiras, enquanto suas vistas, entre curiosas e invasivas, lhe perguntavam por que diabos não o atendia logo (a chamada era um tanto espalhafatosa).

              “Alô ?”

              Oi!

               Inconfundível a voz cálida e descontraída. Apesar de observado, Albano não conseguiu conter a contração em lábios e rosto.     

              “Lúcio, ‘pera um pouco que já te ligo.”

               A dupla que o cercava com olhos curiosos – e a fofoqueira Zilah em especial – não pareceu muito convencida sobre o sexo de quem chamava.

              Ele tardaria um pouco em levantar-se. Imaginariam que dissimulava, quando, na verdade, depois do logro da noitada, não sentia qualquer urgência em falar com ela.

              Chegado ao WC – ouvira a caminho o sussurro da baranga de que estava ali a serviço -  foi logo ligando.

              “Então agora me chama de Lúcio...”

              “Gostaria de saber o que houve... se é que houve algo”, interrompeu.

              “Meu Amor, como você pode ser tão mal pensado? Eurípides me telefonou várias vezes... Não sei se desconfiou de algo, o fato é que tantas ligações só podiam me tirar a tranquilidade...”

              “Yvone, esse temor não faz o menor sentido... Você age como alguém que tem um telefone fixo em casa... Será que não se deu conta de que, com o celular, você leva a casa junto ?”

             “Você não conhece o Eurípides... Não sei, mas ele me deu a impressão de que tinha alguma suspeita...”

             “Amor, eu aceito tudo. Já faço idéia do medo que você tem dele.., O que é difícil, nessas condições, será entender por que não pôde me avisar de que ontem não daria pé...”

             Com a sua voz envolvente, ela contornava todos os seus reclamos. O tempo, entrementes, passava.

             Yvone, vou ter de voltar à minha mesa. Afinal, estou aqui para trabalhar.”

              “Tá bem, meu amor. Não quero atrapalhar...”, disse, num murmúrio.

              “E como é que ficamos?”

              “Te garanto, meu amor, que hoje não falharei...”

               E antes que ele lograsse arrancar-lhe alguma precisão na promessa, Yvone cortou a ligação.

                                                         

                                                         X I I

           

                “Oi, meu querido !”

                 Por um instante, ele ficou em silêncio. Não que tivesse qualquer dúvida sobre a identidade de quem lhe chamava. No visor do celular, além do número conhecido, aparecia também o nome de quem chamava.

                Estava no ônibus, que, para variar, mal avançava. Na Praça da Bandeira, caíra em um engarrafamento. Por outro lado, como a antecipada ligação, não viera, Albano já não mais a aguardava. Afinal, o seu comportamento não mudara.

              “Qual é a tua, Yvone?”

              “Amor, não estou entendendo...”

              “Depois do sumiço da noite de ontem, você me telefona para a repartição, como se nada fosse...  Me promete que não vai falhar e, pra variar, falha outra vez!”

              “Benzinho, não esquenta, eu posso explicar...”

              “Não duvido que você possa... O que eu quero é outra coisa... Gostaria de reencontrar a moça do bar... O campo está livre, mas você age como se ele não tivesse viajado...”

              “Vejo que você sacou bem o meu medo...”

              “Como é que é?”

                Surpreendido com o argumento, que levava a sério o que dissera por deboche. Albano não se conteve e alteou a voz, a ponto de merecer olhar atravessado do vizinho de banco.

              “Não esquenta, meu amor...”

              “Yvone, o que é que está havendo ?”

               “O Eurípides é meio maluco... No passado, me confessou que pode armar uma jogada desse tipo...”

              “Que tipo ?”

              “Montar uma viagem fajuta, só para testar a minha fidelidade...”

              “Isso não faz sentido...”

              “Pra você, talvez, que não o conhece, mas comigo é diferente...”

              “Como assim ?”

              “Tem um ciúme doentio e é muito violento.”

              “Esse cara viajou, meu amor! Mete isso na cabeça!”

              “É a lógica, que funciona conosco, mas não pra ele!”

              “Me dá um tempo ?”

              “Não tou te entendendo, amor...”

               “Benzinho, confia em mim. Em um minuto te chamo.”

                                                        *

                “Minha querida, grato pelo tempo que me deu...”

                 “Um minuto, hein?”

                 “Agora, que eu matei a charada, você precisa ter um pouco de paciência...”

                 “Agora, quem não tá entendendo sou eu”, replicou ela.

                 “Tenho uma proposta pra te fazer...”

                 “O que é?”, perguntou desconfiada.

                 “Vamos fazer as pazes no nosso barzinho... lá eu te explico tudo.”

                Yvone, curiosa, queria saber mais. Albano, no entanto, soube interessá-la, sem nada precisar de concreto. De uma parte, a curiosidade, e de outra, o lugar conhecido, tornavam o convite irresistível.

 

O Controle da Mídia

                            

        Até o momento, a democracia brasileira tem logrado evitar as tentativas de setores do Partido dos Trabalhadores de instaurar no Brasil o chamado controle social da mídia.

        Nesse sentido, Franklin Martins, ministro da Comunicação Social durante o governo Lula da Silva preparou proposta de regulamentação, que intentava normatizar o setor da radiodifusão.

        Dentro do mesmo escopo, o ex-Ministro Martins defendia igualmente a criação de Conselho de Comunicação para regular o conteúdo de rádios e televisão.

        Sob o diáfano véu de muitos congressos ligados a e dominados por setores intervencionistas do PT, se buscou dar a impressão (a) de que se tratava de reivindicação democrática da base e (b) de cercear o poder opinativo da mídia (definida de preferência de forma abrangente), sob a normativa programática do intervencionismo de estampo chavista no que concerne à informação.

        Essa tese, que conta com a simpatia (antes distante, mas hoje bem mais próxima) do líder máximo Lula da Silva, e das correntes da esquerda e da ultra-esquerda petista, por sorte da democracia brasileira ainda não vingou.

         Franklin Martins pode ser passível de muitas restrições, mas seria suma injustiça atribuir-lhe pecha de falto de persistência no levar avante a causa da censura da comunicação, por mais inconstitucional que se afigure o arrocho do pensamento público.

         Como lacrimeja de inveja diante de o que acredita o avanço desse controle sob o regime neopopulista introduzido pelo finado Hugo Chávez, e hoje continuado, pelo discípulo e caminhoneiro Nicolás Maduro, na Venezuela, e por Rafael Correa, no Equador, esse setor do PT – sobre o qual pode ocasionalmente volitar Lula da Silva – obteve em recente reunião no Palácio do Alvorada – como informa a Folha -  da candidata à reeleição Dilma Rousseff que ela tope, em hipotético segundo mandato, implementar a regulamentação econômica da mídia.

         Dilma, que para sua honra, engavetara em seu atual mandato a dúbia reforma que declara objetivar o controle do conteúdo da mídia, resolveu ceder em parte, ao sinalizar que admitia tratar da parte econômica: “Não há quem me faça aceitar discutir controle de conteúdo. Já a regulação econômica não só é possível discutir como desejável.”

         O mais interessante no capítulo é que nem o Supremo, nem o Palácio do Planalto nada tem efeito para objetivarem o banimento da censura, sob qualquer forma, do Brasil. Os leitores do meu blog terão acompanhado a saga da censura ao Estado de São Paulo, até hoje de pé, a despeito de determinada por sentença inconstitucional do Desembargador Dácio Vieira do TJ-DF, assim como pululam, nos grotões e em certas metrópoles, formas de censura judicial e de outro jaez, como o biográfico, que até agora tem conseguido impedir venham à luz biografias como a de Roberto Carlos e de muitos outros. Tanta inação ou tal falta de sentido de oportunidade – quando o Supremo enjeitou valer-se de juízo de liminar para varrer por inconstitucional a dita censura ao Estadão – nos acende a luzinha da dúvida quanto à vontade política de afirmar uma verdade que nos primeiros dias da Constituição dita Cidadã era objeto de ensurdecedor consenso. Será que algum dia vamos expulsar – contra os Sarney e a sua grei – a censura, camaleônica ou não, do Brasil, e bradar, Censura, nunca mais! como o fez Fernando Lyra ?

        Mas voltemos a dona Dilma. Se a sua heterogênea coligação dos ex-faxinados, da Bolsa Família e demais assistenciados, lograrem a dúbia proeza de entregar-lhe de novo a taça para quem nos trouxe a inflação de volta (entre outras supostas benesses), e confirmar o seu desígnio de, num almejado segundo mandato, proceder à regulamentação dos artigos 220 e 222 da Constituição. Embora Lula da Silva chegasse a defender a regulação da mídia num tom que foi interpretado como eventual senha para debater também um controle de conteúdo da imprensa, pode-se garantir que uma porventura reeleita Dilma continuará a vetar o ingresso dessa nova censura apadrinhada por Franklin Martins et al. ?

         É insondável se tal ampliação do desígnio do grande líder seja argúcia de algum inventivo assessor, ou se efetivamente provem do grande timoneiro, será objeto de interpretações futuras, pois, sem o saber, Lula da Silva pode emular o oráculo de Delfos nas propositais ambiguidades.

         Sem embargo – e quanto a isso não há dúvidas – os companheiros se alegram ao ver que dona Dilma concorde afinal nessa reforma (ou reforminha), que, na verdade, mira, como o deseja o PT de Rui Falcão e do ex-ministro Franklin Martins, o domínio da Rede Globo. Dilma, no entanto, busca conter o açodamento dessa aliança de ocasião. Consoante afirmou, muita gente (leia-se a esquerda petista e quem sabe, Lula da Silva) “confunde regulação com controle de conteúdo, isso não posso aceitar”.

           Querendo esclarecer, mas na verdade tornando as águas inda mais turvas, acrescentou a  Presidenta:   temos de qualificar esse discurso” e mais adiante “o presidente Lula está discutindo regulação”.

            Não é por aí. Ao invés de querer sufocar o pensamento, se deveria cuidar do Brasil, de sua economia e de sua situação em geral. Sair desse chavascal em que nos fazem viver e cuidar do desenvolvimento pleno, sem mordaças, atalhos e todas as chagas do subdesenvolvimento, a começar pela corrupção e seus corifeus.

 

(Fonte: Folha de S. Paulo)