sábado, 28 de fevereiro de 2009

Dos Jornais XXIX

O GLOBO - 27.II. 2009

A partir desta data, militares argentinos que cometerem delitos serão julgados pela Justiça Federal e submetidos ao Código Penal, como qualquer cidadão. Além do Código de Justiça Militar, a nova lei abroga a pena de morte e não mais pune o homossexualismo entre militares.
A lei foi aprovada por 154 votos a favor ( e dois contra) na Câmara de Deputados; no Senado, foi aprovado por unanimidade.
A reforma da Justiça Militar era uma das principais metas da Ministra da Defesa, Nilda Garré, ex-militante peronista de esquerda, perseguida pela última ditadura militar argentina (1976-1983). Para Garré e sua equipe, o processo de democratização das Forças Armadas não podia excluir a modificação do sistema de Justiça Militar: “Não podemos conceber uma democracia sem que as Forças Armadas estejam submetidas à autoridade civil, eleita pelo voto popular, como estabelece a Carta Democrática Interamerica”, declarou a Ministra.

Comentário do Cidadão. Esta iniciativa dos nossos hermanos da República Argentina mais uma vez mostra quão à frente no processo democrático eles se encontram em relação ao Brasil, máxime no que diz respeito à aplicação às esferas castrenses da isonomia. Basta uma visão pressurosa da realidade brasileira para que se verifique o quanto devemos avançar em termos da paridade de direitos. Senão vejamos: nos Estados Unidos, nenhum Governador, Prefeito, Senador ou Deputado goza de privilégio em relação ao cidadão comum; no Brasil – e não é de hoje – cresce igualmente o corporativismo, em detrimento do Povo, em nome de quem as Constituições democráticas são promulgadas.
Para atendermos ao assunto em epígrafe – abolição da justiça militar na Argentina e a adoção pelo Brasil do exemplo portenho – caberiam as considerações seguintes: continuam a espantar as luvas de pelica que calça em nossa terra o Poder Civil em relação a exercer - na prática e não no discurso – a supremacia das autoridades eleitas ( a começar pelo Presidente ) em relação aos militares. O próprio Ministério da Defesa, a duras penas implantado pelo Presidente anterior, é pouco mais do que uma hiper-estrutura sobre o Alto Comando Militar. Não há até o presente uma estruturação da autoridade civil – como existe, por exemplo, nos Estados Unidos – que torne realidade fática este suposto comando civil do poder armado.
Todas as constituições republicanas têm refletido esta bem-comportada atenção às peculiaridades do poder castrense, como se verifica nas seções que tratam dos Tribunais e Juízes Militares (Seção VII do Capítulo III, arts. 122 a 124 da Constituição de 1988). Decorre, portanto, dessa caracteristica, que uma eventual abrogação da Justiça Militar não poderia ser realizada por legislação ordinária e sim por emenda constitucional.
De resto, os nossos Pais da Pátria estão sempre prontos a aumentar os respectivos benefícios e privilégios, exibindo uma singular alienação com respeito àquele Povo em nome de quem percebem as tantas vantagens e penduricalhos que se atribuem. Neste campo, arrostam muita vez com corporativa audácia a Opinião Pública. No entanto, quando se trate de cercear privilégios de outros estamentos – e a fortiori das corporações armadas – a sua atitude muda radicalmente. A prudência seria uma virtude até conservadora no que norteia a disposição legislativa de introduzir reformas democráticas nas Forças Armadas.
Diante de o que precede, será compreensível o desalento do cidadão diante da aparente baixa probabilidade de que o nosso Congresso assuma iniciativa similar a dos representantes do povo argentino.
Para tanto, talvez, seria oportuno que o Poder Executivo estivesse consciente da autoridade que lhe foi delegada pelo Povo Brasileiro. Se no Império, as Pastas da Guerra e da Marinha podiam ser destinadas a civis, na República – que, segundo alguns, deveria a sua criação ao Exército – somente Epitácio Pessoa, na década de vinte do século passado, teve a coragem de chamar dois civis para as Pastas Militares (que, de resto, se houveram, muito bem). Depois, as pastas castrenses voltaram a generais e almirantes, com o parêntese compreensível da implantação do Ministério da Aeronáutica, a que Getúlio Vargas chamou o político gaúcho Salgado Filho (que igualmente, pasmem, fez um bom trabalho). Os civis só voltariam a serem ministros nessa área, quando da laboriosa implantação do Ministério da Defesa, sob Fernando Henrique Cardoso.
Diante de tais precedentes, há de parecer que não são deveras brilhantes as perspectivas de próxima mudança no Brasil, com a abolição da Justiça Militar e de tantos outros privilégios. Seria um tema, aliás, em que teria muita satisfação e orgulho de que os acontecimentos me provassem em erro. Infelizmente, salvo prova em contrário, tal não se afigura ser o caso.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Obama - o Primeiro Discurso do Estado da União

Na terça-feira, 24 de fevereiro, o Presidente Obama pronunciou perante o Congresso o seu primeiro discurso do Estado da União. A despeito da crise financeira internacional e da recessão nos Estados Unidos, assistir a tal espetáculo já é participar de um inegável contentamento e de grande satisfação.
O contentamento surge como um fenômeno espontâneo, ao contemplar-se o quadro icônico que este State of the Union fornece: vemos Barack Obama e um pouco atrás o Vice-Presidente Joe Biden, na sua qualidade de Presidente do Senado, e a Representante Nancy Pelosi, como Presidente (Speaker) da Casa de Representantes. É a reificação da vontade popular, manifestada na última eleição, e, o que talvez seja mais importante, é o desaparecimento público de George W. Bush e de seu Vice-Presidente (muitos diriam co-Presidente), Dick Cheney. A então presença de Nancy Pelosi era apenas o bom augúrio de o que estava por vir.
Desse contentamento participa a grande maioria do povo americano, e não só democratas, mas também muitos republicanos, a que decerto confrangia se verem representados por uma dupla em que a esperteza da mediocridade presidencial se alinhava ao reacionarismo vice-presidencial, militante, entranhado e soturno.
Quanto à satisfação, semelha relevante assinalar-lhe o caráter intelectual. Ao espectador cabe presenciar que a mensagem do candidato Obama, com sua ênfase na mudança (change) não só se confirma na fala do novel Presidente, como se estrutura em seus artigos mais marcantes. Também aqui o contraste com o antecessor é enorme e em certos aspectos chega a ser quase constrangedor. E a pergunta que há de confrontar o eleitorado - como se permitiu que a mais alta curul ficasse à deriva por oito anos ? – não há de desaparecer enquanto os seus desastrosos efeitos inda perdurarem.
Diante de um tal enquadramento, contentamento e satisfação têm menos a ver com o júbilo dos vencedores do que com a conscientização – que se ía registrando a cada frase, a cada parágrafo da alocução – de que a visão, debuxada nas primárias, e ampliada nos debates e nos discursos que antecederam à eleição de novembro, ora se confirma na sua pertinência, inteligência, espírito inovador e na própria coragem. São conhecidas as qualidades de Obama – aqueles que as ignoraram ou menosprezaram morderam a acre poeira da derrota – e vê-las agora refletir-se nas linhas do discurso, só faz aumentar a certeza no seu próprio desenvolvimento, que será a consecução dos objetivos programáticos da nova Presidência.
Há uma nítida separação entre os que gostaram e os que não gostaram do pronunciamento. Dentre esses últimos, avulta Wall Street, que apreciaria, segundo foi declarado, que o Presidente tivesse sido mais específico no que tange ao mercado financeiro e à crise. A má-fé se serve de muitos argumentos, as mais das vezes apenas para encobrir o respectivo e inconfessável interesse. Surpreende, no entanto, que pressuponha indicações pormenorizadas em uma intervenção que não pode ser mais do que um quadro sinótico das grandes diretivas presidenciais.
Obama começa o seu governo com terrível herança, em um cenário que só admite comparação com a posse de Franklin Delano Roosevelt, em 1933. O seu predecessor, o republicano Herbert Hoover, era um homem capaz e respeitado, e, não obstante, teria a administração marcada na história por ser arrastada e vencida por uma crise a que não logrou sequer entender, quanto mais enfrentar. Não há negar que George W. Bush, talvez o pior presidente da história americana, deixa legado que é difícil aferrar em um par de adjetivos. Ao invés do superavit que recebeu do governo de Bill Clinton, Bush repassa a Obama um deficit de um trilhão de dólares, uma guerra desavisada e ruinosa, uma portentosa crise financeira, imagem internacional manchada pela tortura e o desrespeito dos tratados internacionais,etc.etc.
O Presidente Obama, que já mostra na cabeça as cãs prematuras dos imensos fardos do poder, está não só à altura do desafio, mas também desvela na oração que as suas metas não se limitam a reparar os estragos que a cupidez e a incompetência disseminaram. Em meio às restrições orçamentárias, causadas pelo deficit, a recessão – com o seu triste cortejo do desemprego, da penúria, e das inquietudes sociais – e last but not least a crise da finança e da indústria (o espectro do Banco Lehmann Brothers a rondar o Citibank e o Bank of America, as grandes montadoras como GM e Chrysler com a concordata às portas), Obama prometeu não apenas a recuperação – em ambiente saneado por agências regulamentadoras responsáveis e com executivos com outros parâmetros de responsabilidade – senão acenou a três áreas determinantes – educação, saúde e energia – que pretende acionar e inovar. São janelas abertas para o futuro, que mostram cenários já bosquejados durante a campanha eleitoral.
Na noite da grande crise, em que todos – como assinalou o Presidente – serão forçados a sacrificar as respectivas prioridades, ele apontou com decisão os domínios que mesmo em tempos adversos não lhe parecem suscetíveis de uma benigna negligência.
Cinquenta e três vezes foi o discurso interrompido por aplausos. Em muitas oportunidades, às palmas se sucederam aclamações de pé. Se o número dos que se manifestavam se terá por vezes inchado pelo temor de que a própria oposição fosse confundida com falta de patriotismo, poderá ser um bom augúrio para a administração Obama. A popularidade é alimentada pela competência, credibilidade, firmeza e comunicação. Esperemos que lá ela saiba manter-se e traduzir-se, através do apoio de Povo e Congresso, em reformas autênticas, generosas e necessárias.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

A Entrevista do Senador Jarbas Vasconcelos. Repercussão

A entrevista do Senador Jarbas Vasconcelos, publicada nas páginas amarelas da Revista VEJA, está tendo grande repercussão, embora ocorra em período pré-carnavalesco, decerto não o mais favorável a esse tipo de notícia. O Senador por Pernambuco, que se assinala por hombridade e honestidade, entrou para o antigo MDB, e continua no PMDB que, segundo afirma, “ é um partido sem bandeiras, sem propostas, sem um norte. É uma confederação de líderes regionais.” Passando das características de conhecimento público do PMDB, em resposta à pergunta ‘para que o PMDB quer cargos ?’ assevera o Senador: “para fazer negócios, ganhar comissões.(...) A maioria dos peemedebistas se especializou nessas coisas pelas quais os governos são denunciados: manipulação de licitações, contratações dirigidas, corrupção em geral. A corrupção está impregnada em todos os partidos. Boa parte do PMDB quer mesmo é corrupção.”
Depois de reportar que Jarbas Vasconcelos sempre fora elogiado por Lula, chegando a ser cotado para vice em sua chapa, VEJA indagou por que ele se tornou um dos maiores opositores a seu governo no Congresso: “Era essencial o apoio a Lula, pois ele havia se comprometido com a sociedade a promover reformas e governar com ética. Com o desenrolar do primeiro mandato, diante dos sucessivos escândalos, percebi que Lula não tinha nenhum compromisso com reformas ou com ética. Também não fez reforma tributária, não completou a reforma da Previdência nem a reforma trabalhista. Então eu acho que já foram seis anos perdidos.”
Questionado acerca do país ter voltado a crescer e os indicadores sociais terem melhorado, disse: “O grande mérito de Lula foi não ter mexido na economia. Mas foi só. O país não tem infraestrutura, as estradas são ruins, os aeroportos acanhados, os portos estão estrangulados, o setor elétrico vem-se arrastando. A politica externa do governo é outra piada de mau gosto. Um governo que deixou a ética de lado, que não fez as reformas nem fez nada pela infraestrutura agora tem como bandeira o PAC, que é um amontoado de projetos velhos reunidos em um pacote eleitoreiro. É um governo medíocre. E o mais grave é que essa mediocridade contamina vários setores do país.” Diante da asserção do entrevistador de que o Presidente é recordista de popularidade, o Senador respondeu: “O marketing e o assistencialismo de Lula conseguem mexer com o país inteiro.(...) Ele fez essa opção clara pelo assistencialismo para milhões de famílias, o que é uma chave para a popularidade em um país pobre. O Bolsa Família é o maior programa oficial de compra de votos do mundo.”
Na apresentação da entrevista, a 'Carta ao Leitor' se pergunta da possivel reação do PMDB e dentre as alternativas se menciona processar o senador por falta de decoro parlamentar, ou vestir a carapuça e começar a mudar o comportamento.
VEJA nada diz sobre eventual falta de reação do PMDB. Ora, os principais acusados, José Sarney - dele disse Jarbas que a eleição de Sarney para a presidência do Senado é um completo retrocesso. A moralização e a renovação são incompatíveis com a figura do senador – e Renan Calheiros, atual líder do PMDB no Senado ( Jarbas: Ele não tem nenhuma condição moral ou política para ser senador, quanto mais para liderar qualquer partido) preferiram não se manifestar sobre o mérito das declarações do Senador de Pernambuco.
O PMDB procurou desdramatizar a iniciativa de Jarbas Vasconcelos, taxando a entrevista de “desabafo”. O Presidente do partido e da Câmara, Michel Temer, deu a tônica: “Repudiamos a afirmação de que o PMDB é corrupto. Não queremos dar relevo a algo que não tem especificidade. Não há intenção de apenar o senador. O que não queremos é dar relevância a isso.” Dentro da legenda, haveria o propósito de isolar a Jarbas, para que ele saia do partido.

Por enquanto se afigura cedo para aquilatar o alcance da entrevista de Jarbas Vasconcelos, se este grito contra a corrupção e o atual aparente anestesiamento da sociedade evoluirá para um movimento de contestação do PMDB e de seus caciques, em ulterior reação contra a presente mediocrização da classe política, ou se converterá em simples balbúrdia, que os estamentos dominantes lograrão vencer pelo silêncio e a estudada indiferença.
Em outras palavras, o futuro dirá se nos deparamos com uma nova carta do Marquês de Barbacena, que predisse, sem meias palavras, ao Imperador Pedro I a iminência da sua queda, ou com simples discurso inconsequente, do gênero dos que se ouvem da tribuna do Senado ou da Câmara.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Chávez e o Continuismo

DOS JORNAIS XXIX

O GLOBO (14.02)
FOLHA DE S. PAULO


Nunca uma predição como a de García Marquez, feita nas primícias do governo de Hugo Chávez, após uma conversa realizada em viagem aérea, de que o venezuelano poderia tornar-se mais um caudilho latino-americano, se vê comprovada de forma tão pesada e incisiva. O eleitorado vai para o referendo de amanhã cansado. Essa fadiga é explicável: os dez anos de governo do Coronel Hugo Chávez Frias assistiram a catorze processos eleitorais. Se nem todas estas consultas e eleições foram de iniciativa de Chávez, obviamente é esmagadora a parte de responsabilidade do atual Presidente. Compreende-se, assim, o cansaço e a relativa desmotivação do corpo eleitoral. Há pouco mais de um ano, Chávez convocara referendo (no qual foi derrotado) em que pleiteou a mesma possibilidade de reeleição indefinida, que volta agora a solicitar.
Há muitos fatores que influenciarão o resultado de amanhã. Por ora, as pesquisas apontam para uma ligeira maioria do SIM.

Hugo Chávez e o seu Exército Popular (que não é Brancaleone). Após as grandes maiorias dos primeiros comícios, o governo de Chávez acentuou a divisão do país. Entre outros, apóiam a Chávez as ditas camadas populares, trabalhadores e boa parcela do exército. O Presidente venezuelano, valendo-se do considerável ágio auferido com a elevação da cotação do petróleo (que despencou com a atual crise financeira mundial), tem promovido o assistencialismo através das ‘missões’ junto às classes menos favorecidas. A despeito do aumento da corrupção, do agravamento da inflação, do favorecimento do situacionismo e da crescente deterioração da democracia, persiste a recolher o chavismo o apoio de uma relativa maioria da população.
Dadas as perspectivas desfavoráveis para a continuação da fonte desses recursos para a política assistencialista de Chávez – estando a cotação do petróleo na faixa dos quarenta dólares e não mais nos munificentes três dígitos – não é segredo que essa contingência terá sido uma das principais condicionantes da pressa do Presidente em realizar novo referendo continuista. Minguando a cornucópia do ouro negro, os dispêndios com os programas ‘populares’ do Chávez terão de ser cortados. Para a sustentação do chamado projeto social-bolivariano do novo caudilho venezuelano é fundamental o apoio das classes de menor renda. Quanto às benesses internacionais, que costuraram, com o escopo de um oco personalismo, e à custa das desatendidas carências de uma Venezuela dependente da virtual monocultura petrolífera, uma disparatada aliança que vai da Cuba de Raul Castro, passando pela Nicarágua de Ortega até a Argentina dos Kirchner, não resta a menor dúvida a respeito de sua desimportância em termos estratégicos de sustentação de poder.
Dessa maneira, é o espantalho de uma caixa vazia para prover os projetos social-políticos de Chávez no âmbito interno que aciona essa renovada consulta, feita em uma situação, se me é permitida a analogia, enquanto Braz é tesoureiro. Passado o tempo das vacas gordas, outra tenderá a ser a postura das classes desfavorecidas.

Relativo Desinteresse da Esquerda Internacional. Assinale-se, a propósito, que se registra uma atitude diversa da esquerda européia e americana. O cariz personalista e continuista da emenda proposta por Chávez tem desencorajado a manifestação favorável desses grupos. Resulta difícil justificar a constante modificação da legislação para viabilizar a permanência no poder de um só homem. No receituário do caudilhismo, se está diante de tentativa de aprofundamento do poder pessoal de Hugo Chávez.

As Oposições. A coalizão anti-Chávez se ressente de duas deficiências. A oposição continua acéfala, pois até o momento não surgiu líderança que congregasse as diversas correntes da população contrárias a Hugo Chávez. Esta falta pode não ser ocasional, eis que é uma característica dos regimes autoritários – pela própria essência que embasa a sua preponderância - a criação de condições que desestimulem a formação de um polo alternativo de poder. Por outro lado, a impopularidade do anterior regime democrático – que motivou o putsch do tenente-coronel Hugo Chávez contra o viajor Presidente Carlos Andrés Pérez – tende a afastar qualquer nome desse período. Até o momento, portanto, devemos falar de oposições contra Chávez, o que decerto contribui para enfraquecer o movimento.
Importa, no entanto, assinalar que dentre as componentes dessa fragilizada oposição, avulta o movimento estudantil. Dada a importância histórica desse movimento – e me reporto não apenas à Venezuela mas a toda a América Latina – é compreensível o temor com que o caudilho Chávez encara a atuação dos estudantes. Não foi por acaso que o Presidente impediu a realização de duas grandes marchas estudantis na última semana, além de violências policiais promovidas anteriormente contra lideranças universitárias opositoras. O chavismo não se caracteriza pela timidez nos seus recursos a meios truculentos contra pessoas vistas como potenciais ameaças. A recente expulsão de dirigentes da Human Rights Watchculpados pela divulgação de relatório crítico da Administração Chávez em termos de direitos humanos – agora se acrescenta outra expulsão, a do deputado espanhol Luis Herrero, que pretendera uma credencial de observador internacional no referendo.
A segunda deficiência da coalizão anti-Chávez tem a ver também com o cansaço e a decorrente relativa falta de motivação diante do referendo. O excesso de consultas, pela artificial banalização do processo, tende a refletir-se no ânimo dos opositores, dada a repetição ad nauseam dos desafios, sem resultados práticos (tenha-se presente a recentíssima eleição para governadores, que, apesar da vitória das oposições nos principais estados, foi em parte esvaziada posteriormente por medidas do poder federal).
Não obstante, forçoso se afigura reconhecer que a democracia (refiro-me à autêntica, que prescinde de adjetivações) pode ser uma tenra plantinha (como a definia um politico da República Velha), mas tende a mostrar irritante teimosia e persistência na consecução (de preferência, pacífica) de seus objetivos.
É de esperar-se, pelo bem da Venezuela e da América Latina, que ela reincida nessas características no Referendo de amanhã, quinze de fevereiro de 2009.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Bento XVI e as relações com os judeus

Das Revistas: DER SPIEGEL (2.2.09)

Relações entre o Papado e o Judaismo. O Papel de Bento XVI

A delicada questão das relações entre a religião católica e o judaismo recebeu novo tratamento a partir do Concílio Vaticano II, convocado pelo Papa João XXIII e concluído pelo seu sucessor Paulo VI. Essas relações, cuja melhoria muito se deve à especial atenção dedicada pelo Papa João Paulo II, ora atravessam, por causa de decreto de Bento XVI, uma inesperada crise.
Como se há de compreender, esse relacionamento torna-se ainda mais sensível se visto em um contexto alemão. Em decorrência disso, a revista semanal Der Spiegel dedicou a matéria de capa ao atual Pontífice, a sua responsabilidade na eclosão da crise, e a avaliação histórica da difícil relação entre católicos e judeus.
No presente artigo, me utilizarei, portanto, como fonte principal do texto do Spiegel. Assinale-se, contudo, que, por uma estranha omissão, os articulistas do semanário alemão se reportam apenas incidentalmente a Angelo Roncalli, que se tornaria o Santo Padre João XXIII, cognominado o Papa do Concílio (transcorreu a 25 de janeiro último o cinqüentenário do Anúncio pontifício do Concilio Ecumênico aos Cardeais na Basílica de São Paulo fuori mura). As referências, por conseguinte, ao Beato Papa Roncalli são de minha responsabilidade.
A suposta responsabilidade dos judeus na morte de Jesus, que lhes é atribuída já pelo Apóstolo Paulo, tornou difíceis as relações entre a Cristandade e os hebreus. Sofreram eles muitas perseguições que, obviamente, não se originaram na maior parte dos casos do Vaticano. No momento mais sombrio de sua história, durante o Holocausto, resultado da demência de Hitler e dos nazistas, muitos bispos, sacerdotes e leigos católicos se empenharam em salvar vidas dos irmãos hebreus. Nesse sentido, o bispo Roncalli, então delegado apostólico em Constantinopla, muito se esforçou em salvar os judeus ameaçados em sua área de jurisdição.
Quanto ao papel desempenhado pelo Papa Pio XII, e a controvérsia relativa ao seu suposto silêncio na questão, somente o exame da documentação vaticana esclarecerá no futuro, quando ampla e irrestrista investigação for autorizada, se procedem ou não as censuras dirigidas contra Papa Pacelli, acirradas a partir de 1963, com a peça do dramaturgo Rolf Hochhuth “O Vigário”.
Com a sua atitude ecumênica, o bispo Angelo Roncalli iniciaria o árduo trabalho de reaproximação não só com as comunidades judaicas, senão com as outras comunidades cristãs, seja a ortodoxa (cisma do século XI), seja a protestante, com a reforma de Lutero e outros (no final da segunda década do século XVI). Em sua famosa alocução de abertura do Concílio, em 11 de outubro de 1962, o Papa João XXIII apontou para os padres conciliares a vocacão ecumênica do Concílio, declarando passada a época das condenações. Nesse sentido, a declaração conciliar “Nostra aetate”, promulgada em 1965 já sob o seguinte pontificado, inocenta os judeus de responsabilidade pela morte de Jesus na cruz.
Para o trabalho de reaproximação entre catolicismo e judaismo, muito contribuíu o Papa João Paulo II, que, em março de 2000, pediu aos judeus o perdão pelo sofrimento que lhes fora infligido no passado pela Igreja.
A melhoria das relações entre católicos e judeus sofreu sério abalo pela decisão unilateral do Papa Bento XVI de cancelar a excomunhão pronunciada por Papa Wojtyla, em janeiro de 1988, de quatro bispos da Irmandade de Pio (ligados ao cisma do bispo Lefebvre). Apesar de a determinação de Papa Ratzinger de receber de volta no seio da Igreja os ultra-conservadores haja provocado espanto e indignação dentro e fora do Vaticano, tal constituía uma iniciativa que dizia respeito unicamente aos católicos.
Houve, no entanto, uma exceção, que acarretou consequências muito além dos muros leoninos e da comunidade católica lato sensu. Dentre os quatro bispos, está o inglês Richard Williamson, que há pouco declarou à televisão sueca que “nenhum judeu morreu em câmara de gás”. O prelado nega o Holocausto, afirmando que ao invés de seis milhões de mortes, o extermínio se terá restringido a trezentos ou quatrocentos mil judeus.
Segundo sublinha Der Spiegel, o escândalo decorrente desse gesto solitário e possivelmente irrefletido de Bento XVI redespertou em todo mundo suspeitas de que a Igreja Católica não abandonara em realidade o seu velho anti-semitismo. Dessarte, o Papa teria recolocado em questão a obra de reconciliação feita por seu imediato predecessor João Paulo II, e levantado junto a seus próprio fiéis ‘o temor de que o Papa alemão possa ser um Papa da Restauração, e que deseje reconduzir a Igreja à torre de marfim do dogma teológico’.
Forte foi a reação judaica, como, de resto, seria de esperar. O Conselho Superior dos Rabinos suspendeu de imediato o diálogo inter-religioso com a Santa Sé. Jizchak Cohen, Ministro israelense responsável pelos Assuntos Religiosos recomendou que ‘sejam rompidos por completo os laços com uma Corporação em que existam membros negadores do Holocausto e anti-semitas’, com o que se referia às relações diplomáticas com o Vaticano. E o rabino Israel Meir Lau, sobrevivente de Buchenwald, e ex-rabino superior de Israel, se perguntou: “Como pode um tal negador receber a proteção e a reabilitação do Líder da Igreja Católica ?”
Essa questão igualmente desperta celeuma entre os católicos e como sublinha o artigo, sobretudo na Alemanha, a pátria de Joseph Ratzinger, o atual Pontífice. Nessas reações, o padre jesuíta Klaus Mertes, reitor da Igreja em memória dos vítimas do Nazismo, expressou o seu espanto acerca do bispo Williamson. Mas também sobre a decisão de Roma. “Pode ser que as razões não tenham sido comunicadas. Mas que razões podem ser estas, pelo amor de Deus ?”
Não obstante as reações vivazes e veementes, externadas em meios também leigos e políticos, o Papa não pareceu de início haver sentido a profundidade do sentimento contrário à sua medida. Segundo familiares seus, Bento XVI não estaria preocupado com a repercussão da anulação da excomunhão dos bispos. Mesmo a sua menção, na alocução da audiência pública da quarta-feira, da Schoa e da própria visita a Auschwitz, e de sua completa solidariedade com ‘nossos irmãos da primeira Aliança’, e sua condenação do ‘ imprevisível poder do Mal’, não teve a necessária e espontânea força de um improviso, fora do manuscrito preparado pela Cúria.
Esse comportamento do Papa suscita indagações acerca de sua maneira de decidir. Homem da Igreja e não do século, Bento XVI se ressente de certa falta de sensibilidade quanto às eventuais consequências de suas iniciativas. Um exemplo inicial dessa deficiência de percepção política pode ser apontado no seu discurso de Regensburg, em 2006, quando citou de um esquecido imperador bizantino a frase “Mostra-me o que Maomé trouxe de novo, e encontrarás apenas cousas ruins e inumanas”. A previsível reação muçulmana se estendeu de Casablanca a Jacarta, e deu muito trabalho à diplomacia vaticana no intento de contextualizar as citações do Papa (e de tirar-lhes a aparência de um vezo anti-islamista).
Também de questionável habilidade diplomática foi a iniciativa de batizar um convertido e ex-muçulmano na basílica de São Pedro, na noite pascal de 2008. Para tanto, o Papa acolhera sugestão do movimento leigo italiano, de tendência conservadora, ‘Comunhão e Liberação’. Em função deste batismo, houve diversas reações islamistas, e até do próprio Osama ben Laden, com a acusação de uma ‘nova cruzada contra o Islam’.
Não é segredo o viés conservador do Papa – foi por muitos anos o Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé ( o ex- Santo Ofício ) e, nessa qualidade, esteve empenhado em diversas ações contra teólogos como Leonardo Boff e Edward Schillebeeckx. Criticou decisões do Concilio Ecumênico (como a abolição da missa em latim, no rito tridentino) e tem demonstrado muita admiração por Pio XII, que é, para muitos, o ícone dos opositores das reformas introduzidas pelo Concílio. Sem embargo da resistência que encontra em diversos meios e em especial no judaismo, o Papa tem manifestado o respectivo apoio ao processo de beatificação de seu antecessor Eugenio Pacelli (1939-1958).
O processo de decisão do Papa, além da influência de um conservadorismo acrescido, se tem pautado, pelo menos em algumas ocasiões, por falta de consulta aos órgãos competentes da Cúria romana. Esse relativo isolamento pontifício pode acarretar sérios problemas para a Igreja. A tal propósito, a maneira voluntarista e a ausência de verificação prévia no que respeita às implicações da anulação das excomunhões dos quatro bispos mostra claramente as lacunas e os riscos a que se expõe um approach dessa natureza de parte do Sucessor de Pedro.
É decerto questionável o intento de anular este cisma, e trazer de volta ao aprisco cerca de 0,02% do rebanho católico. Convenha-se que importou em sacrifício desmesurado, criando a acima descrita situação para a Igreja. Mais preocupam, entretanto, as inúmeras falhas do processo decisório. O Decreto para Anulação da Excomunhão foi decidido por Bento XVI sem consultar os órgãos para tanto competentes da Cúria, a saber o Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos e a própria Congregação dos Bispos. O Prefeito desta Congregação, o Cardeal Giovanni Battista Re, tomou conhecimento do decreto a posteriori, a fim de referendá-lo. Re, na oportunidade, verberou o erro que atribuiu ao Cardeal colombiano Castrillon. Com efeito, a iniciativa teria partido do citado Cardeal, ligado a meios tradicionalistas, próximos ao Pontífice.

Reação da Chanceler Angela Merkel.

Segundo informações retransmitidas pela imprensa brasileira, a Primeira Ministra da Alemanha se manifestou de forma inequívoca no sentido de que o bispo Richard Williamson se retratasse, não se limitando a uma simples afirmação de que lamentava o transtorno que as suas declarações pudessem haver causado. Tal iniciativa de Angela Merkel, em assunto de foro eclesial, traduzia sem dúvida a sua inquietude com os eventuais reflexos que poderia ter para o seu país um retrocesso no relacionamento entre católicos e judeus, durante o pontificado de um Papa bávaro.
Segundo noticiado, seguiu-se comunicação telefônica entre o Santo Padre e a Chanceler alemã. Nada transpirou do telefonema, salvo que Merkel reiterara as respectivas inquietações e o Papa significara a sua opinião na matéria. Os órgãos de imprensa acentuaram a cordialidade do diálogo entre o Chefe da Igreja e a luterana, chefe do governo alemão.
Nos dias subsequentes, a instância vaticana competente comunicou oficialmente ao bispo Williamson que se deseja voltar ao seio da Igreja deverá retratar-se de sua negação do Holocausto.
Forçoso será reconhecer que estamos no domínio da especulação, se porventura alvitrarmos que o endurecimento da posição vaticana no que tange ao bispo Williamson terá sido consequência da intervenção da Chanceler germânica.

E a Resposta do Papa diante da Crise

Em iniciativa que surpreendeu a muitos, a diplomacia vaticana logrou organizar visita de líderes de organizações judaicas norte-americanas ao Sumo Pontífice. Em audiência especial, realizada ontem, doze de fevereiro, ouviram os participantes, recebidos na Sala Clementina, discurso de Bento XVI em que afirmou: “qualquer negação ou minimização desse terrível crime (o Holocausto) é intolerável”. A declaração foi considerada a mais forte condenação à negação do Holocausto feita até agora pelo Papa.
Nessa oportunidade, o Santo Padre anunciou que está planejando visitar Israel, o que segundo a Cúria Romana deverá ocorrer em maio próximo. Esta é a segunda visita de um Pontífice à Terra Santa, depois da ida de João Paulo II em 2000. Se realizada nesse curto prazo, será nova indicação do compromisso do Papa na manutenção de boas relações entre católicos e judeus.
Nesses termos, o entendimento tenderia a normalizar-se, com a aceitação pela maioria das organizações judaicas das manifestações pontifícias quanto à sua dissociação das posições dos negacionistas. Como se afigura óbvio, existem nos dois campos elementos mais radicais que hão de procurar instrumentalizar a crise para atender aos próprios fins. Não deverão, no entanto, impedir a normalização do relacionamento, a menos que surja algum outro desenvolvimento que venha a favorecê-los no futuro.
É de esperar-se que Bento XVI haja aprendido a sua lição. Terá ele presente que todo o trabalho para superar a crise e corrigir a situação sobreveniente não teria sido necessário, caso tivessem sido tomadas as providências de rotina ao ensejo da feitura do decreto de anulação da excomunhão dos bispos ordenados por Monsenhor Lefebvre.
A consulta aos órgãos competentes e as indispensáveis verificações da Cúria podem atrasar a publicação de decreto, e assim desagradar aos anseios dos fâmulos. Asseguram, todavia, uma alternativa que se afigura preferível: não cometer erros por desnecessária pressa, ou fazê-los, mas com plena consciência dos riscos assumidos .

sábado, 7 de fevereiro de 2009

A Presunção da Inocência do Réu

Na quinta-feira passada, dia cinco de fevereiro, o Supremo Tribunal Federal, por sete votos a quatro permitiu que réus já condenados continuem em liberdade até se esgotarem todas as possibilidades de recurso judicial.
Esta decisão provocou onda de protestos que vai da opinião pública até associações da corporação judiciária, com a única exceção da Ordem dos Advogados do Brasil.
Em primeiro lugar, acredito relevante que se procure entender o que significa este princípio jurídico, apanágio da jurisprudência de tantos países civilizados. A presunção da inocência do réu é um princípio do estado democrático, que se propõe salvaguardar os direitos básicos de cidadãos ou súditos, dadas as práticas de regimes ditatoriais (ou assemelhados) no passado (e no presente) que, partindo do pressuposto contrário (i.e., da culpa do acusado), se arrogavam todos os direitos, nada concedendo ao particular, submetido aos abusos do arbítrio.
Daí, nos estados democráticos, surgiu o principio da presunção da inocência. Tenha-se presente que é um princípio dentre muitos outros, cujo escopo precípuo é de facultar ao acusado os meios necessários para a sua defesa. Não se pode confundir o significado deste axioma jurídico, que é, repito, assegurar amplas condições de defesa ao réu. É uma conquista essencial do direito, mas não pode ser interpretada de forma a que tal princípio sobreleve aos demais, e que venha a significar, por conseguinte, não mais apenas um princípio mas na verdade um fim do processo judiciário.
Lamentavelmente, ao invés de o que possa parecer à primeira vista, essa verificação não é um simples raciocínio ad absurdum, eis que representa a constatação do absurdo erigido em objetivo-fim da atividade judiciária.
Explico-me. A atual maioria no S.T.F., ao hipervalorizar a presunção de inocência semelha menoscabar o princípio aristotélico do meio termo, pendendo para as posições eivadas de absolutismo e intolerância de Platão, como se lê em partes da República e notadamente nas Leis. Não, meu caro leitor, esta minha asserção não é paradoxo. De resto, tal decisão do Supremo tampouco é isolada. O Tribunal Superior Eleitoral, presidido por Ministro do Supremo, potencializou o princípio da presunção na mesma linha adotada pelo STF, com o virtual esvaziamento dos crimes eleitorais, eis que aos réus (em muitos dos casos autoridades coatoras que flagrantemente intentaram fraudar o processo eleitoral) também é outorgado o benefício da dúvida infinita, com a sua consequente manutenção no cargo eletivo, a despeito das evidências e sentenças em contrário.
Porque acoimo a atual maioria do Supremo de vincular-se a filosofia de ranço autoritário, quando aparentemente os preclaros Ministros se reputam liberais ? Em virtude de razão muito singela. Se se desvirtua um princípio basilar do direito, a ponto de transformá-lo na negação do direito, o que pode redundar de uma decisão desse quilate será que, junto com a água se jogue igualmente o bebê. Em outras palavras, no futuro a reação do Povo a essa forma peculiar de justiça venha a desconhecer dos direitos a que todo réu faz jus. Com a água da barrela, perderíamos igualmente o princípio enquanto válido para que o acusado possa defender-se.
Sociologicamente talvez seja compreensível o mundo caótico do sistema jurídico nacional, porque corresponde às tendências anômicas ora tão presentes na sociedade brasileira. Há diversas coisas que, mesmo para um bacharel como eu, que seguiu a carreira da diplomacia (e portanto da tentativa de entender a diferença do Outro na ótica da Paz), são difíceis de compreender.
Em um país no qual a Justiça é considerada morosa, em que não há quase limites para a procrastinação dos processos, por força de engenhosos recursos de hábeis advogados, e em que assistimos à aplicação por Ministros do STF de duas interpretações opostas do princípio da presunção de inocência (na prática, absoluta em um caso de alegado crime fazendário, e denegada em outro, de crime comum), caberia, data venia, a pergunta: tudo isso ocorre por que a nossa Justiça é um mundo estanque e soberano, numa visão extrema da Constituição Cidadã ?
A resposta é obviamente não. Decerto, ela tem a sua parte de responsabilidade, mas aspectos claramente disfuncionais - como o da permissividade na utilização irrestrita dos recursos processuais – se baseiam em normas legais defasadas, que só persistem pela inação dos Poderes Legislativo e Executivo.
Ao vermos tantas boas intenções aplicadas em pavimentar estrada que não levará decerto ao melhor dos mundos, contrariando os presumíveis propósitos de seus idealizadores, valho-me de uma prerrogativa de observador – que tantos anos exerci por dever de ofício – para sinalizar sentimento que acredito difuso na sociedade brasileira.
O Brasil tem uma história rica de grandes líderes, como o Regente Feijó, arrostando a desordem do interregno, Pedro II, um homem sábio e verdadeiro democrata, a ponto de aceitar a ingratidão de seus súditos, o Visconde de Mauá, empresário cercado pela monocultura, o Conselheiro José Antonio Saraiva, ave de voo baixo mas de pouso certo, o Barão do Rio Branco, Getúlio Vargas e a transformação do Brasil, Sobral Pinto, em que a honradez e a coragem se uniam, e por fim Juscelino Kubitschek, em que o homem cordial, o político e o visionário são facetas de uma personalidade de escol.
A vocação nacional do Brasil, por tudo que representa e pela plêiade passada – de que foram escolhidos alguns, mas outros mais também poderiam ser chamados – nos deve dar alento para que esse período de incertezas e de descrença venha a ser breve superado por pessoas cujo compromisso com a grandeza não lhes faça esquecer os ditames do bom senso.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

A Morte Anunciada da Renovação no Congresso

O que significa a eleição de José Sarney para a Presidência do Senado Federal e a de Michel Temer para a da Câmara de Deputados ?
Parafraseando o verso famoso de Dante Alighieri, o Povo brasileiro deve abandonar toda esperança de renovação ao adentrar nos dois anos do mandato desses dois políticos do P.M.D.B.
O nosso Congresso parece viver em realidade própria, em que o mandato popular é visto mais como formalidade necessária, a ser atendida a cada quatro anos (oito no caso dos Senadores), do que compromisso com o Povo, em que o interesse nacional sobrepaire aos demais.
O corporativismo, esta doença pandêmica que qual uma hidra levanta as suas cabeças nos três poderes da República – para limitar-se apenas às atividades do poder público – aí se mostra com toda a sua arrogância, no menosprezo dos ditames da Ética e na negação da austeridade, que não seja de fachada.
Este desvirtuamento da missão do parlamentar se manifesta em tantos exemplos que se me afigura confrangedor intentar aqui repeti-los in extenso. Ao invés de atender à letra e ao espírito das normas constitucionais, as preocupações da grande maioria dos senhores congressistas parecem ser bem outras.
Que mensagem esses senhores mandam para a Nação trabalhando dois dias se tanto por semana, viajando de graça a cada semana para o seu domicílio eleitoral ? Sem falar dos recessos, tanto os regimentais, quanto os brancos ? E o que dizer dos deputados licenciados que voltaram à Camara para votar para a eleição da Mesa, e que, segundo noticia o jornal O Globo, não se pejam, como Jorge Bittar, de receber um mês de salário por um dia de trabalho ?
O constituinte Luiz Inácio Lula da Silva se referiu no passado aos trezentos picaretas – o chamado baixo clero – que formam cerca de dois terços da Casa. Da década de oitenta para cá esse número se terá estabilizado, ou haverá ainda mais crescido ?
Pela sucessão de escândalos e pela escassa atenção ao clamor da opinião pública, não faz muito mencionou-se abertamente a possibilidade da abolição do Senado Federal como instituição. Que os escândalos de Renan Calheiros, Antônio Carlos Magalhães e Jader Barbalho tenham parcialmente motivado esta aspiração pelo visto não fez os antes denominados Pais da Pátria cogitarem da oportunidade de medidas que pelo menos encetassem a recuperação do Senado.
A única reforma positiva no Congresso correspondeu à determinação do Poder Judiciário, ao por cobro à dança indecente dos políticos nômades, que não viam mal em enjeitar legenda e mandato popular com a repetida troca da filiação partidária, em facilidade comparável a quem muda de gravata.
Que dizer da Reforma Política, de que tanto se fala e que jamais sai das gavetas das comissões ? Pode alguém menos crédulo do que a Velhinha de Taubaté acreditar na possibilidade da extinção do patrimonialismo no Senado (em que o Senador eleito se arroga o direito de indicar como suplentes parentes, apaniguados, etc.) ? Como pode um indivíduo que não recebeu sequer um voto completar o mandato de oito anos de um Senador, como ocorreu tantas vezes ?
Será que realmente o Brasil não é um país sério, juízo que embora atribuído ao General Charles de Gaulle, foi também reivindicado por um antigo Embaixador do Brasil em Paris ?
Se o sistema de representação no Brasil pode criar esses grupamentos que estão muita vez por suas atitudes, palavras e votos ao arrepio da Nação, o eleitor brasileiro deve considerar o sufrágio não como uma vazia exigência legal, mas como oportunidade de colocar no Poder Legislativo não aqueles que por uma infinidade de razões desejam servir-se do poder enquanto poder, e não como instrumento para promover o bem público. É bem verdade que o sistema eleitoral que aí está, pela excessiva fragmentação partidária, pelas legendas de aluguel e pelos burgos podres distribuídos por esses vastos Brasis podem ser suscetíveis de engendrar tais criaturas monstruosas, verdadeiras contradições ao ideal republicano.
Rui Barbosa, nos albores da República, houve por bem transpor para a primeira Carta republicana normas da Constituição norte-americana. Se o propósito bem intencionado foi desvirtuado pelas práticas da República Velha, parece-me, sem embargo, que algo deveríamos imitar de nossos poderosos irmãos do Norte. O voto deve ter tanto no Chui, quanto no Oiapoque o mesmo valor e peso. Os Estados são iguais na sua representação no Senado, mas não o podem ser na Casa do Povo que é a Câmara. A revolução inglesa no século XIX prescindiu das armas, porque soube ouvir a vontade popular. Não pode haver limites aos quocientes eleitorais, que não sejam aqueles relativos ao número efetivo de eleitores. O privilégio nesse particular é inadmissível porque mascara a representação democrática com o coronelismo, a corrupção e outras mazelas. Posto que decerto introduzidas com boas intenções, refletiam na realidade o que disse Jean-Jacques Rousseau das obras do Abbé de Saint-Pierre: ‘grandes idéias, mas de pequena visão’.
Mas voltemos à reassunção pelo P.M.D.B. do comando do Congresso Nacional. O que tem o P.M.D.B. de hoje a ver com o M.D.B. de Ulysses Guimarães e tantos outros que eram oposição ao regime militar, em contraposição a Petronio Portella, José Sarney e outros muitos, que estavam nas hostes da Arena ? Basta contemplar a hodierna representação peemedebista para responder: pouco ou quase nada. O P.M.D.B. atual é uma grande frente partidária, congregando diversos líderes regionais, com minguado fundamento ideológico, e abundantes porções clientelísticas e fisiológicas. Tem alguma semelhança com as federações dos partidos republicanos da República Velha, que no Rio de Janeiro serviam ao poder federal, mas nas províncias tinham diferentes receitas, muitas fundadas no caciquismo.
Sem dúvida, o P.M.D.B. entende de poder, mas é um poder com limitações definidas, em que o aspecto fisiológico costuma sobrepor-se a interesses mais altos. Não é de esperar-se que medidas de renovação – como as aventadas pelo Senador petista Tião Viana, deixado ao relento pelo Executivo – possam vingar durante o seu turno. Mesmo se abstrairmos da biografia dos dois novos presidentes, a história nos ensina que são poucos os eleitos que desrespeitam a vontade majoritária dos grupos que os elegeram.
E assim será até que a esperança logre vencer o ceticismo de muitos, e por fim ressurja um movimento que nos orgulhe a nós brasileiros. Os invernos – e as secas - podem ser longos mas não são eternos.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Das Revistas

ISTO É - 4Fev09
VEJA - 4Fev09

A Isto É desta semana publica entrevista exclusiva de Césare Battisti, cuja leitura recomendo. A esse propósito Leonardo Attuch desenvolve a tese de que “o que incomoda Roma no caso Battisti é a origem e não a natureza da decisão”. Fundamenta esta assertiva na diferença do tratamento dado pelo governo italiano a duas recusas de extradição. A primeira, pelo governo francês, de não extraditar a terrorista italiana Marina Petrella, alegando razões humanitárias. A segunda, pelo governo brasileiro, de não extraditar o terrorista Césare Battisti, alegando razões humanitárias.
No primeiro caso, “Roma discordou, mas respeitosamente acatou a decisão de Paris”. No segundo, é necessário explicitar a desmedida reação italiana, com uma série de ameaças ao governo brasileiro ?

Comentário. O que terá motivado reações tão díspares do governo Berlusconi, de respeito pela atitude da França e de desrespeito – e até mesmo menosprezo – pela posição do Brasil ? A Revista VEJA na sua coluna Gente dá uma nota intitulada Tutti Paesani que é lamentável pela triste realidade que expõe. Um grupo de brasileiros se jacta de haver conseguido a nacionalidade (e o passaporte) italianos. Dentre eles, o ex-Ministro Gilberto Gil (atendendo a sugestão de funcionários do consulado italiano, ao acompanhar sua esposa, Flora Giordano, que o precedeu na obtenção deste documento); Marisa Lula da Silva (sem comentários); e Christiane Torloni, a atriz global, que declarou já haver usado muito o dito passaporte, acrescentando: ‘As pessoas te olham com mais simpatia’. A esse propósito, Leonardo Attuch assinala, com carradas de razão que “o que nos coloca numa posição de inferioridade são as imensas filas nos consulados, com pedidos de dupla cidadania. Na semana passada, Gilberto Gil (...) se tornou italiano. Tempos atrás, até a primeira-dama, Marisa Letícia festejou a cidadania italiana, dizendo pensar no futuro dos filhos. É esse nosso complexo de vira-latas que ainda dá aos italianos a falsa ilusão de que podem falar grosso com o Brasil.”
A auto-estima do brasileiro enquanto brasileiro é tema demasiado complexo para que possa ser tratado neste contexto. É, no entanto, preocupante essa demonstração de falta de brasilidade e – porque não dizer ? – de ignorância da real situação do país do signore Berlusconi. A leitura de artigos sobre a Itália e a visão de filmes como, v.g., Gomorra poderiam ser muito ilustrativos para esses brasileiros que não parecem prezar tanto o que é o Brasil e o que ele representa. Se um governo como o de Berlusconi se julga autorizado a menoscabar nosso país, uma parcela ponderável da motivação deve ser atribuída a atitudes de brasileiros que não se afiguram muito lisongeiras para a terra em que nasceram e da qual tiram o sustento cotidiano.
Assim, explica-se em grande parte o estardalhaço italiano por causa de Cesare Battisti, e da decisão do Ministro Tarso Genro de conceder-lhe o direito de refúgio . Por falar nisso, depois da estranha frase do Presidente Lula de que acatará a decisão do Supremo na matéria, o nosso Ministro da Justiça não se estará sentindo um tanto solitário ?